Algumas dores são localizadas. Outras se disseminam; tudo dói. Explico melhor. Algumas feridas só machucam no local; uma queimadura, um espinho, uma contusão, indicam exatamente o lugar e o tipo de dor. Mas há sofrimentos que se alastram de tal maneira que se perde inclusive a origem da ferida. Basta apertar onde foi machucado e sensações desagradáveis se espalham como ondas. A dor fica sistêmica. Mas isso vale não só para o físico. Há feridas da alma que são septicêmicas.
As feridas narcísicas, por exemplo, não machucam apenas em um determinado ponto. Elas se transformam em agonias integrais. Feridas narcísicas são as que vêem da infância ou quando o esforço de firmar a identidade foi frustrado. E sempre que alguém toca nessas ulcerações da alma, tudo sofre.
Por isso, sejamos sempre cuidadosos com os juízos. Podemos lacerar uma pessoa por inteiro. Os juízos são sempre temerários. Quanto menos conhecemos uma pessoa, mais rápidas as sentenças. Caso tivéssemos acesso aos dilemas mais íntimos, às disfuncionalidades familiares mais antigas, talvez usássemos de mais misericórdia quando condenamos.
O rei Davi optou ser julgado por Deus e não pelos homens porque sabia que Deus conhece os porões subjetivos do espírito, as hesitações da alma e os medos do coração. E os homens concluem com vereditos precipitados; com análises superficiais.
Zidane, o jogador de futebol francês, perdeu a distinção porque um adversário fez algum comentário danoso sobre sua mãe e irmã. Cutucado na ferida narcísica, todo o homem reagiu. Cristo advertiu àqueles que desprezam essas sensibilidades e partem para chamar o próximo de “raca”, que significa louco. Eles são dignos do inferno.
Já constatei o estrago que uma palavra mal dada produz, pois tratei de pessoas destruídas pela dor narcísica. Não existem xingamentos ingênuos, tudo o que se fala não produzi efeitos momentâneos, mas consequências boas ou arrasadoras na autoestima de alguém. Em minha breve existência, cuidei de mulheres destruídas por comentários levianos. Conheci homens boicotados de se tornarem tudo o que podiam porque alguém, que conhecia suas feridas narcísicas, alfinetaram onde mais doía. Para destruir uma pessoa, basta lembrar malfeitos, vergonhas públicas, deficiências físicas, inadequações familiares. A música interpretada por Ana Carolina carrega uma sensibilidade especial. Ela fala de um “vendedor de flores que ensina seus filhos a escolher seus amores”. Quanta ternura! O mundo seria diferente se lidássemos com o próximo com a delicadeza de quem mexe com pétalas de rosa.
Educação, finesse e sensibilidade não vêem de berço. São construções que demoram às vezes a vida toda. Nesta geração individualista, em que as pessoas mal se preocupam com a felicidade alheia, já faltam espaços para cuidar de tantos que pedem ajuda para dores que nem eles mesmos conseguem expressar.
Zelemos com um guarda nos lábios para que nossas palavras produzam vida, nunca morte.
Vi no http://www.ricardogondim.com.br/
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