Minha vida se organizou também com tragédias. O primeiro grande drama aconteceu na breve existência de minha irmã caçula, que viveu apenas dois dias. Ela se chamava Gelsa, em homenagem a uma tia muito querida; era gêmea do Sergio, que sobreviveu. Recordo nitidamente o desespero que nos sobreveio naquela época. Era véspera do Natal e o papai estava preso; morríamos de medo da polícia política dos ditadores e convivíamos com vergonha social - a vizinhança parava na frente da casa do “subversivo” - rótulo dado aos delinqüentes ideológicos, que mereciam tortura.
Gelsa nasceu sem intestino e com uma hérnia umbilical estrangulada. Veio ao mundo, portanto, já condenada a morrer de fome. Em 48 horas, como os médicos prenunciaram, minha irmã se desidratou; sem conseguir digerir o leite materno, sucumbiu à inanição. Eu a segurei nos braços por apenas 30 segundos. Quando mirei seus olhos fechados, chorei lágrimas pré-adolescentes e provei um sal amargo, que ainda reconheço.
Devolvi a minha irmã para um adulto e saí para fazer a primeira oração consciente que me lembre. Desesperado, clamei a Deus - não recordo as palavras exatas: “Meu Deus, por favor, não deixe a minha irmã morrer; não permita que a mamãe sofra mais; na cadeia o papai não vai agüentar”.
Não fui atendido. Deus não respondeu. Os céus se blindaram à voz de uma criança. Dois dias depois, nossa família aflita chorou ao lado da sepultura.
Desde essa primeira tragédia até hoje, meados dos 50 anos de idade, já testemunhei angústias semelhantes. Nunca esquecerei aquela tarde. Meia hora antes de pregar, fui chamado para orar por uma criança de nove anos de idade que agonizava com leucemia. Logo que entrei no jardim da casa, seu pai me abraçou. O desespero daquele homem arranhou o meu coração: “Pastor, peça a Deus para tirar o câncer da Beatriz e colocar em mim. Não soporto o sofrimento da minha filha”. Quando me aproximei da menininha, deitada em posição fetal, magérrima e sussurrando uma dor atroz, joguei-me de joelhos ao lado da cama.
Pela segunda vez, clamei desesperado por uma menina. Eu via a irmã que perdera. “Deus, tenha misericórdia desta criança; por meio de teu filho, cura a Beatriz”. Novamente as palavras bateram contra portas de aço. Poucos dias depois, acompanhei a família ao mesmo cemitério onde minha irmã jazia.
Recordo-me de uma família de missionários que inutilmente pediu, jejuou, convocou uma multidão de “intercessores”, para que a filha de 17 anos não morresse – a jovem havia caído de uma motocicleta, bateu a cabeça no asfalto e teve morte cerebral.
Quando vi o Ângelo - ele era líder de jovens de nossa igreja - se contorcendo após um acidente automobilístico, perguntei ao médico o que as convulsões indicavam. Com lágrimas nos olhos por ver um rapaz de 19 naquele estado, respondeu-me: “Ele está ‘des-cerebrando’”. Ajoelhei-me na UTI do Hospital São Paulo como se implorasse por meu filho. O Ângelo morreu 10 dias depois.
Paradoxalmente, acredito em milagres. Sei que outras pessoas contam eventos opostos. Respeito-as e não duvido de nenhuma experiência fantástica de livramento, provisão, resgate e cura. Entendo, inclusive, o desatino de procurar invalidar as narrativas de milagre; não me proponho a esta tarefa, que considero perniciosa.
Quero, tão somente, dar esperança aos que, como eu, amargaram o silêncio divino. Multidões não receberam resposta quando imploraram por milagre na hora mais horrorosa: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste”. Procuro ajudar as pessoas a não perderem a fé porque tinham expectativa de cura e acabaram se frustrando. Alguns apelaram desde o abismo da aflição, mas não tiveram resposta nenhuma. Pretendo mostrar que os silêncios divinos não são descaso ou desamparo, mas a condição, o jeito, como Deus soberanamente organizou o mundo.
Considero, inclusive, que nossas inquietações possam ser respondidas na tentação de Jesus no deserto. Trato o episódio como chave de compreensão de como podemos lidar com a vida.
O Espírito levou Cristo até o deserto para ser tentado. Ali o diabo ofereceu três vantagens para que Jesus enfrentasse o desafio de viver: provisão, livramento e prosperidade. Caso aceitasse transformar pedras em pães, todos os famintos do mundo poderiam reivindicar a mesma coisa; se pedisse o socorro dos anjos, todos os acidentes seriam “evitáveis”; ao receber os reinos do mundo por decreto, o livre arbítrio humano ficaria anulado. Jesus rejeitou ter a fome satisfeita por magia; não permitiu que se criassem expectativas falsas de um mundo sem percalços; e rechaçou conquistar os reinos deste mundo pelo poder. Preferiu mostrar em sua própria vida que liberdade era a maior dádiva que Deus nos concedera.
Em minha caminhada como pastor e estudioso da Bíblia constato que as comunidades religiosas interpretam os milagres dentro de “zonas de plausibilidade”, isto é, faz-se do sinal e da maravilha a prova que legitima a pregação. Como os milagres mais complicados de se concretizarem poderiam invalidar a mensagem, os líderes se concentram nos que têm boas chances de “realmente” acontecerem. Assim, evitam-se as doenças "mais complicadas" e perde-se de vista, infelizmente, os que mais sofrem.
Olho para minha trajetória e reconheço: nos momentos mais cruciais da vida, na hora em que mais se precisava de um "enorme" milagre, ele simplesmente não aconteceu.
Sinto que a antiga dor de ver a minha irmã morrer de fome, somada às inúmeras tragédias que já presenciei, me despertaram a repensar o conceito de fé. Desejo advertir as pessoas que organizam a vida esperando possíveis milagres e dizer que terão enormes chances de se frustrarem. Temo que se decepcionem com Deus, com o que se entende por fé e com a vida.
Fé pode sair do estágio infantil como força que “consegue mover o braço de Deus” ou de “abrir as janelas do céu” para ser uma coragem. Fé é uma aposta de que a sabedoria divina, com seus princípios e verdades, basta para que enfrentar os percalços e tragédias da vida.
Assim, convido os que já sofreram para que olhem a vida como uma maratona. Para vencê-la, socorros sobrenaturais não são essenciais. Jesus de Nazaré encarou a história sem pedir a ajuda de anjos. Ele não evitou a cruz e, por isso, triunfou. A mensagem do Evangelho não promete imunidade ou alívio das tribulações, mas bom ânimo; o frágil Carpinteiro venceu na hora mais desolada. Em seu clamor, “Eloí, Eloí, lama sabactani”, encontramos uma certeza: é possível triunfar mesmo sem sermos poupados da morte.
Soli Deo Gloria.
2 comentários:
a paz querido, estava lendo um artigo do elienai junior e citou esse texto do gondim, Deus abençoe a sua vida por essa atitude[divulgaçao da palavro do Senhor por meio desse grande homem q é o Ricardo Gondim]
abraçus
lindo texto
Blz Luder!!!
Tanto o Ricardo como o Elienai tem sido refrigério para minha alma.
Tenho aprendido muito com esses dois homens de Deus.
Grande abraço pra vc!!!!!
Postar um comentário