O filósofo cristão Dr. William Lane Craig e o filósofo ateu Dr. Ray Bradley debateram sobre a questão “poderia um Deus amoroso mandar pessoas para o inferno?” na Universidade Simon Fraser, Canadá, em 1994.
Este texto é a transcrição do discurso inicial do Dr. Craig.
Argumentos Introdutórios do Dr. Craig
Obrigado. “Se Deus realmente é amor, então como pode mandar alguém para o inferno?” A questão é quase um vexame para os cristãos hoje. Por um lado, a Bíblia ensina que Deus é amor, e ainda, por outro lado, adverte sobre aqueles que rejeitam a Deus perante a punição eterna, e contém avisos freqüentes sobre o perigo de ir para o inferno. Mas não são ambas de alguma forma inconsistentes uma com a outra? Bem, muitas pessoas parecem pensar que são inconsistentes, mas na verdade isto não é de todo óbvio. Afinal, não existe uma contradição explícita entre elas. A frase “Deus é amor” e “Algumas pessoas vão para o inferno” não são explicitamente contraditórias. Então se essas são ambas inconsistentes, devem existir algumas pressuposições implícitas que serviriam para extrair a contradição e torná-la explícita.
Mas quais são essas pressuposições? Parece a mim que o difamador do inferno está fazendo duas pressuposições cruciais. Primeiro, afirma que se Deus é Todo-Poderoso, então pode criar um mundo no qual todos escolhem livremente dar sua vida a Deus e serem salvos. Segundo, afirma que se Deus é amor, então prefere um mundo no qual todos escolhem livremente dar sua vida a Deus e serem salvos. Desde que Deus é desejoso e capaz de criar um mundo em que todos são salvos livremente, segue-se que ninguém vai para o inferno.
Agora perceba que ambas afirmações tem que ser necessariamente verdadeiras, para provar que Deus e o inferno são logicamente inconsistentes um com o outro. Então, sendo que existe até uma possibilidade de uma das afirmações ser falsa, é possível que Deus é amor e que ainda assim algumas pessoas vão para o inferno. Além disso, o oponente do inferno tem que sustentar um ônus pesado de provas, inclusive. Ele tem que provar que ambas afirmações são necessariamente verdadeiras.
Mas de fato, parece a mim que nenhuma dessas afirmações é necessariamente verdadeira. Para explicar isso, permita-me explanar para você o ensino cristão a respeito de Deus e do inferno. De acordo com a Bíblia, a natureza de Deus é tanto justiça perfeita quanto amor perfeito. Ambas são igualmente poderosas, e nenhuma delas pode ser comprometida. Vamos olhar primeiramente para a justiça de Deus. Estava conversando com um aluno, uma vez, a respeito de sua necessidade de salvação, e ele disse a mim “Confio na justiça de Deus. Não acho que poderia existir alguém que fosse mais reto ou justo que Deus. Tenho a plena certeza em sua decisão”. Agora isto é verdadeiro. Deus é reto. Totalmente justo. Ele não tem contas a acertar. Não está aí para pegar você. Ele é o mais competente, inteligente, imparcial e mais justo juiz que você terá. Ninguém terá uma decisão bombástica numa cadeira durante o julgamento de Deus. Todos os humanos podem ficar garantidos de uma justiça absoluta.
Mas isto é precisamente o problema! Porque a justiça de Deus expõe a inadequação humana. A Bíblia diz que todas as pessoas falharam em viver a lei moral divina e então se encontram culpados perante Deus. A palavra bíblica para esta falha moral é pecado. A Bíblia diz que “Todos estão debaixo do poder do pecado. Não há um justo; não, um justo sequer; todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3.10, 12 e 23).
Então percebemos que estamos debaixo da lei da justiça divina. Você colhe o que planta. A Bíblia diz, “Não se enganem; Deus não se deixa escarnecer. Aquilo que o homem plantar, isso também colherá. O que planta na sua carne, da carne colherá a corrupção; mas o que semeia no Espírito, do Espírito colherá a vida eterna”, (Gl 6.7-8). O profeta Ezequiel declarou, “a alma que pecar essa morrerá” (Ez 18.4), e o apóstolo Paulo ecoa, “O salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). Você colhe o que planta. Você colhe o que planta. Está é a justiça em sua forma mais pura.
O único problema é que ninguém é perfeito! Então, se confiamos somente na justiça de Deus, nos afundaremos! Não há ninguém que mereça ir ao céu. Ninguém é bom o bastante! Então se dependemos da justiça de Deus, a temos. E está tudo certo.
Portanto, devemos colocarmo-nos na misericórdia de Deus. Mesmo quando somos culpados e merecemos morrer, Deus ainda nos ama. Algumas vezes as pessoas tem a idéia de que Deus é um tipo de tirano cósmico lá em cima, querendo pegar-nos. Mas esta não é a compreensão cristã de Deus. Escute o que a Bíblia diz, “‘Desejaria eu, de qualquer maneira, a morte do ímpio?’ Diz o Senhor Deus, ‘Não desejo antes que se converta dos seus caminhos e viva? Porque não tenho prazer na morte do que morre’, diz o Senhor Deus, ‘convertei-vos, pois, e vivei’. Dize-lhes: Vivo eu, diz o Senhor DEUS, que não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho, e viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; pois, por que razão morrereis, ó casa de Israel?” (Ez 18.23, 32; 33.11).
Aqui Deus invoca literalmente as pessoas para retornarem de seus caminhos destrutivos e serem salvos. E no Novo Testamento diz, “o Senhor não está querendo que alguns se percam, senão que todos venham a arrepender-se” (2Pe 3.9). “Quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade” (1Tm 2.4).
Assim, Deus encontra-se em um tipo de dilema. De um lado estão Sua justiça e santidade, os quais exigem punição ao pecado, justamente merecida. Por outro lado estão o amor e a misericórdia de Deus, os quais exigem reconciliação e perdão. Ambos são essenciais a natureza Dele; e estão relacionados um com o outro. O que Deus deve fazer com este dilema?
A resposta é Jesus Cristo. Ele é o fundamento da justiça e do amor de Deus. Eles se encontram na cruz: o amor e a ira de Deus. Na cruz, vemos o amor de Deus pelas pessoas e sua ira contra o pecado.
Por um lado vemos o amor de Deus. Jesus morreu em nosso lugar. Ele voluntariamente tomou a si mesmo a pena de morte do pecado que merecíamos. A Bíblia diz, “Nisto está o amor, não em que nos tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou a nós, e enviou seu filho para propiciação pelos nossos pecados”. (1Jo 4.10).
Mas na cruz também vemos a ira de Deus, assim como Seu primeiro julgamento é derramado sobre o pecado. Jesus foi nosso substituto. Ele experimentou a morte por todos os seres humanos e arrancou a punição por todo pecado. Nenhum de nós poderia imaginar o que Ele suportou. Como Olin Curtis escreveu, “Lá somente nosso Deus abre sua mente, seu coração, sua consciência pessoal para o fluir horrendo do pecado, esta história interminável, desde a primeira escolha de egoísmo até agora, da eternidade do inferno, o ilimitado oceano de desolação, Ele permite que lutas e lutas oprimam sua alma”.[1] Jesus suportou o inferno por nós, para que não tivéssemos que suportar. É por isto que Jesus é a chave, e a questão suprema da vida se torna, “O que você vai fazer com Cristo?”.
A fim de receber perdão, precisamos colocar nossa confiança em Cristo como nosso salvador e Senhor de nossas vidas. Mas se rejeitarmos a Cristo, então rejeitamos a misericórdia de Deus e retrocedemos à Sua justiça. E você sabe onde você está. Se rejeitarmos a oferta de perdão de Jesus, então não existe simplesmente ninguém mais que pague a penalidade pelo seu pecado – exceto você mesmo.
Assim, em um sentido, Deus não manda ninguém para o inferno. Seu desejo é que todos sejam salvos, e Ele invoca as pessoas a virem até Ele. Mas se rejeitarmos o sacrifício de Cristo por nós, então Deus não tem escolha senão dar a nós o que merecemos. Deus não nos mandará para o inferno – mas nós mesmos nos mandaremos para lá. Nosso destino eterno, assim sendo, reside em nossas próprias mãos. É uma questão de nossa escolha livre onde iremos passar a eternidade.
Agora, se este cenário é até possível, segue que nenhuma inconsistência tem sido demonstrada entre Deus ser amoroso e algumas pessoas irem para o inferno. Dado que Deus nos criou com livre arbítrio, então Ele não pode garantir que todas as pessoas irão dar suas vidas livremente a Ele para serem salvas. A Bíblia deixa isso muito claro, que Deus deseja que todas as pessoas sejam salvas, e por Seu Espírito, pretende chamar a Si cada um. O único obstáculo para a salvação universal é, portanto, a livre escolha humana. É logicamente impossível fazer alguém fazer por livre vontade alguma coisa. O fato de Deus ser o Todo-Poderoso não significa que Ele possa fazer o logicamente impossível. Assim, mesmo que Ele seja Onipotente, não pode fazer com que todos sejam livremente salvos. Dado a liberdade e a obstinação humanas, algumas pessoas podem ir ao inferno apesar do desejo e esforço de Deus para salvá-los.
Além disso, está longe de ser óbvio que o fato de Deus ser amoroso O obriga a preferir um mundo no qual ninguém vai ao inferno a um mundo no qual algumas pessoas vão. Suponhamos que Deus pudesse criar um mundo em que cada um seria livremente salvo, mas existe somente um problema: tais mundos tem somente uma pessoa dentro deles! O fato de Deus ser todo-amoroso O obriga a preferir um desses mundos que não são populosos sobre um mundo no qual multidões são salvas, mesmo que algumas pessoas vão livremente para o inferno? Eu acredito que não. O fato de Deus ser todo-amoroso implica que em qualquer mundo que Ele crie, Ele deseja e se esforça pela salvação de todas as pessoas. Mas as pessoas que iriam, espontaneamente, rejeitar todos os esforços de Deus para salvá-las não deveriam ser permitidas ter alguma sorte de poder de veto sobre quais mundos Deus é livre para criar. Por que a alegria e a benção daqueles que livremente aceitariam a salvação de Deus deveriam ser impedidas por causa de quem obstinada e livremente iria rejeitá-las? Parece-me que o fato de Deus ser amoroso requereria, no máximo, que Ele criasse um mundo que tivesse um equilíbrio entre os salvos e os perdidos, um mundo no qual tanto quanto possível livremente aceitam a salvação e o mínimo possível livremente a rejeita.
Assim, nenhuma das afirmações cruciais feitas pelo oponente da doutrina do inferno é necessariamente verdadeira. O fato de Deus ser onipotente e amoroso não acarreta o fato de que todos irão abraçar a salvação de Deus ou que ninguém irá rejeitá-lo livremente. E assim, nenhuma inconsistência tem sido demonstrada entre Deus e o inferno.
Agora, o oponente da doutrina do inferno deve admitir que dada a liberdade humana, Deus não pode garantir que todos serão salvos. Algumas pessoas podem condenar livremente a si mesmas ao rejeitar a oferta de salvação de Cristo. Mas, ele pode argumentar, seria injusto que Deus condenasse as pessoas para sempre. Pois até mesmo pecados graves como aqueles dos torturadores nazistas nos campos de concentração ainda merecem somente uma punição finita. Portanto, no máximo, o inferno poderia ser um tipo de purgatório, durando um período de tempo apropriado para cada pessoa antes que esta pessoa esteja liberada e seja levada ao céu. Finalmente, o inferno poderia estar vazio e o céu cheio.
Agora, trata-se de uma objeção interessante, porque defende que o inferno é incompatível, não com o amor de Deus, mas com Sua justiça. A objeção é dizer que Deus é injusto porque a punição não se adequou ao crime.
Trata-se também de uma objeção persuasiva, que poderia ser evitada por adotar a doutrina do aniquilacionismo. Alguns cristãos crêem que o inferno não é a separação eterna de Deus, mas sim a aniquilação do condenado. O inimigo condenado simplesmente deixa de existir, enquanto aos salvos é dada a vida eterna. Agora, enquanto não sou desta opinião particularmente, representa uma forma na qual você poderia ir contra o vigor desta objeção. Mas a objeção é persuasiva por si mesma? Acredito que não.
1) A objeção equivoca-se entre todo pecado que cometemos e todos os pecados que cometemos. Podemos concordar que todo pecado individual que uma pessoa comete merece somente uma punição finita. Mas não segue disto que todos os pecados de uma pessoa juntos como um todo merece somente uma punição finita. Se uma pessoa comete um número infinito de pecados, então a soma total de tais pecados merece uma punição infinita. Agora, claro, ninguém comete um número infinito de pecados na vida terrena. Mas que tal na vida após a morte? Na medida em que os habitantes do inferno continuam a odiar a Deus e rejeitá-Lo, continuam a pecar e por isso acumulam a eles mesmos mais culpa e mais punições. Em um sentido real, então, o inferno é perpétuo por si mesmo. Neste caso, cada pecado tem um castigo finito, mas porque o pecado se prolonga, assim o faz a punição.
2) Por que pensar que todo pecado tem somente uma punição finita? Podemos concordar que pecados como roubo, mentira, adultério, e assim por diante, são somente consequências do finito e então, somente merecem uma punição finita. Mas, em outro sentido, esses pecados não são o que serve para separar alguém de Deus. Porque Cristo morreu por aqueles pecados. A penalidade por aqueles pecados foi paga. Tem-se que aceitar a Cristo como Salvador para ser completamente livre e limpo daqueles pecados. Mas a recusa ao aceitar a Cristo e Seu sacrifício parece ser um pecado de uma ordem completamente diferente. Pois este pecado decididamente separa alguém de Deus e de Sua Salvação. Rejeitar a Cristo é rejeitar ao próprio Deus. E este é um pecado de gravidade e proporção infinitas e, portanto, merece uma punição infinita. Devemos, então, não pensar no inferno primeiramente como punição pela matriz dos pecados de conseqüências finitas os quais cometemos, mas sim, como o que é justo e devido a um pecado de consequência infinita, a saber, a rejeição do próprio Deus.
3) Por fim, é possível que Deus permitisse que o condenado deixasse o inferno e fosse ao céu, mas eles livremente recusam-se a isso. É possível que pessoas no inferno cresçam somente mais implacavelmente em sua ira por Deus assim que o tempo passa. Em vez de se arrependerem e de pedirem a Deus por perdão, eles continuam a amaldiçoá-Lo e rejeitá-Lo. Assim, Deus não tem escolha senão deixá-los onde estão. Neste caso, a porta do inferno está trancada, como John Paul Sartre disse, por dentro. O condenado assim escolhe a separação eterna de Deus. Então, novamente, assim como nenhum desses cenários é possível, invalida a objeção que a justiça perfeita de Deus é incompatível com a separação eterna de Deus.
Mas talvez neste ponto, o oponente da doutrina do inferno poderia tentar uma última objeção. Considerando que não é nem falta de amor nem de justiça de Deus para criar um mundo no qual algumas pessoas rejeitam a Ele de livre vontade sempre, como fica o destino daqueles que nunca ouviram sobre Cristo? Como Deus pode condenar as pessoas que, não por causa delas, nunca tiveram a oportunidade de receber Cristo como seu Salvador? A salvação ou a condenação de um pessoa assim, parece ser o resultado de um acidente histórico e geográfico, o qual é incompatível com um Deus amoroso.
A objeção é, no entanto, falaciosa, porque afirma que aqueles que nunca ouviram sobre Cristo são julgados na mesma base daquele que ouviram. Mas a Bíblia diz que o não-alcançado será julgado em uma base bem diferente da base daqueles que ouviram o evangelho. Deus julgará o não-alcançado na base da resposta deles à auto-revelação na natureza e na consciência. A Bíblia diz que somente da ordem criada, todas as pessoas podem saber que um Deus Criador existe e que Deus implantou sua lei moral nos corações das pessoas, para que elas ficassem inescusáveis a Deus. (Rm 1.20; 2.14-15). A Bíblia promete salvação para todo aquele que responder afirmativamente à sua auto-revelação de Deus (Rm 2.7).
Agora, isto não significa que eles podem ser salvos sem Cristo. Em vez disso, significa que os benefícios do sacrifício de Cristo podem ser aplicados a eles sem seu conhecimento consciente de Cristo. Eles seriam como o povo no Antigo Testamento, antes de Jesus vir, que não tinha o conhecimento consciente de Cristo, mas que estava salvo na base de seu sacrifício através de suas respostas à informação que Deus tinha revelado a eles. E assim, a salvação está verdadeiramente disponível a todas as pessoas em todos os tempos. Tudo depende de nossa escolha livre.
Nenhum cristão aprecia a doutrina do inferno. Eu queria, de verdade, com todo o meu coração que a salvação universal fosse verdade. Mas fingir que as pessoas não são pecadoras e não têm necessidade de salvação seria cruel e enganoso como fingir que todo mundo fosse saudável mesmo quando soubessem que têm uma doença fatal da qual soubessem a cura. A questão perante nós hoje não é, portanto, se gostamos da doutrina do inferno; a questão é se a doutrina é possivelmente verdadeira. Argumentei que nenhuma inconsistência existe entre os conceitos cristãos de Deus e inferno. Se o Dr. Bradley quer manter que são inconsistentes, então o ônus da prova permanece em seus ombros.
Tradução: Tatiana Teles Luques dos Santos
[1] O. A. Curtis, The Christian Faith, p. 325.
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