Toda a controvérsia gira em torno da soberania Divina e do Livre-Arbítrio humano. A escola reformada “consistente” defende que Deus “inicia e executa” todas as coisas, não tendo, portanto, o homem iniciado nada, absolutamente, sejam boas ou más ações. Quando se trata das ações malévolas e destrutivas, especificamente, uma escola de pensamento teológico moderno, conhecida como Neopentecostalismo, afirma que tudo de “ruim” que acontece é culpa do Diabo. Em sentido geral, observando estas duas vertentes, pelo menos no que se refere às mazelas e crimes cometidos pelo homem, este não é o responsável: a culpa é “ou de Deus ou do Diabo”! Nunca do homem, que é apenas o meio, pelo menos podemos entender isso interpretando o que afirmam os expositores de ambos os lados, de forma geral.
Já que a minha intenção aqui não é observar o Neopentecostalismo, que por si mesmo, na vida prática “auto-refuta-se”, me propus a analisar a primeira escola de pensamento que defende o “Decreto Incondicional” de Deus de “todas as coisas”, comparando com alguns trechos da Escritura. Os defensores do “Decreto Incondicional” de Deus são conhecidos como “Hipercalvinistas Supralapsarianos”. Segundo alguns, eles são hipercalvinistas pelo fato de serem “mais” calvinistas que João Calvino. De acordo com outros, utilizam de forma “demasiada” o pensamento do reformador francês. Conhecidos como “supralapsarianos” por defenderem que Deus decidiu “tudo” na eternidade passada, inclusive antes da queda de Adão. Note, a princípio que se esta linha de raciocínio estiver certa, então, Deus decretou a queda, e isso coloca Deus como o autor do pecado, conforme entendia Suzana Wesley, a mãe do grande pregador Metodista John Wesley, em uma carta escrita enquanto este estava em Oxford, ela escreveu: “a doutrina da predestinação, como sustentada pelos rígidos calvinistas, é muito repugnante, e deve ser completamente abominada, porque ela acusa o mais Santo Deus de ser o autor do pecado”[1]. Fatalismo puro! Vamos a algumas citações dos próprios calvinistas:
“Os calvinistas em geral são deterministas”[2] – a natureza da soberania;
Compreende “tudo quanto acontece”, Confissão de fé de Westminster [III: 1];
Outro expositor afirma sobre o pardal que “a toda sábia providência (de Deus) anteriormente estabeleceu que galho ele irá escolher, que grãos ele irá pegar, onde ele irá se abrigar, e onde ele irá construir; no que ele irá viver, e quando ele irá morrer”, além do mais Deus guia a movimentação das “moléculas e átomos que vagam para cima e para baixo em um raio de sol” e que “nem uma partícula de pó voa em uma estrada batida a não ser que Deus a levanta, conduza seu movimento incerto, e por seu cuidado particular, a transporta ao devido lugar que Ele anteriormente designou para ela”[3];
Loraine Boettner declara ainda que o “todo abrangente decreto” inclui tudo no curso da natureza e do “curso da história até os seus menores detalhes.” Isto deve incluir todas as decisões humanas, até mesmo as pecaminosas[4];
Berkhof diz que, “A teologia reformada enfatiza a soberania de Deus em virtude da qual Ele soberanamente determinou desde toda a eternidade tudo o que irá acontecer”[5];
Arthur W. Pink afirma que “Tudo quanto há de ser... Ele, por Si mesmo, já o determinou desde a eternidade”[6];
Sproul dá sua contribuição asseverando que “o que queremos dizer por vontade soberana ou eficaz de Deus é aquela determinação pela qual Deus soberanamente deseja que algo venha a ocorrer que, por conseguinte, de fato ocorre pela absoluta eficácia, força ou poder dessa vontade”[7];
Um outro defensor declara que “a resposta final a pergunta por que uma coisa é e porque ela é como ela é deve sempre permanecer: ‘Deus a quis’, de acordo com a sua soberania absoluta”[8];
Portanto, se o “decreto” é eficaz e determinista, o “livre-arbítrio humano é um mito”[9], pois este decreto deve, necessariamente, incluir as decisões humanas, inclusive as pecaminosas, então, o Deus Santo da Bíblia torna-se o autor do pecado e um ser que diz “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Passarei a mencionar duas experiências narradas por Norman Geisler no livro “Eleitos, mas Livres”, no que se refere à origem do mal. Ele nos conta que conhecia um calvinista extremado, chamado John Gerstner, e que ambos ensinavam na mesma instituição. Gerstner defendia a mesma idéia apresentada por Jonathan Edwards de que a vontade humana é movida pelo desejo mais forte. Convidado a uma das aulas pelo Sr. Geisler, para tratarem sobre o livre-arbítrio, Norman relata que voltou toda a lógica calvinista para o problema do pecado de Lúcifer com uma pergunta: “quem deu a Lúcifer o desejo de rebelar-se contra Deus?”, Gerstner, neste momento, colocou as mãos no rosto e respondeu diante de toda a turma: “mistério, mistério, um grande mistério!”. Isto se deu pelo fato de que se Deus determinou tudo na eternidade passada, conforme os próprios hipercalvinistas, segue-se então que somente Deus poderia ter dado a Lúcifer o desejo de rebelar-se contra Deus, visto que Lúcifer não possuía nenhuma natureza má e nem livre-arbítrio. Sendo assim, Deus causou a rebelião contra Deus! Ele menciona também o relato de um conferencista (calvinista) muito conhecido alegando a incapacidade de confrontar-se com a trágica morte do próprio filho. Sem ter para onde ir, restou-lhe apoiar-se na forte tradição calvinista. Ele chegou à conclusão: “Deus matou o meu filho!”. E pode informar a todos: “então, e somente então, eu obtive paz sobre esse assunto”. Um Deus soberano matou seu filho, e por essa razão encontrou base para uma grande vitória espiritual, assegurou a todos. Porém, Norman Geisler pensou: “o que ele diria se sua filha fosse estuprada?” Será que ele afirmaria: “Deus estuprou minha filha?” Só esse pensamento é ofensivo, mas que não pode fugir a essa interpretação fatalista.[10]
Podemos perceber que a forma como a soberania divina é defendida pelos calvinistas é filosoficamente e biblicamente questionável. Será que Deus é apresentado assim nas Escrituras? É isso que passarei a questionar e será a partir daqui que serei um pouco repetitivo, penso eu, para tentar mostrar os grandes problemas que esta interpretação ocasiona sendo colocada lado-a-lado com trechos das Sagradas Escrituras, pois, se “tudo” o que acontece, só acontece porque Deus “determinou” que acontecesse, então, repito isso deve incluir o pecado, o mal imoral. Estive recentemente conversando com um muçulmano e por ser fatalista, ele afirmou que só acontece algo se Allah “determinar”, e acrescentou que tudo o que já aconteceu, só aconteceu porque Allah determinou. E eu disse a ele: “Ahmad (nome fictício), você não está percebendo que se ‘tudo o que acontece’ só acontece porque Allah determinou, você está afirmando tacitamente que Allah criou o pecado e que determinou o pecado?”. E para minha surpresa, o muçulmano confirmou naturalmente o que deve ser entendido com naturalidade acerca do “decreto incondicional de todas as coisas”, se de fato ele existe, Ahmad confirmou: “Claro! Allah criou o pecado para testar os homens”. O que nenhum calvinista admite naturalmente. Ahmad entendeu as implicações do Decreto Incondicional de “tudo” e simplesmente confirmou o que deveria ser entendido. Portanto, se este Decreto Incondicional de “tudo” quanto acontece existe de fato e que por isso o homem não tem o livre-arbítrio, deve ser entendido também que este não poderia ser responsabilizado por nada do que fizesse, nem sequer ser repreendido, pois foi Deus quem o determinou que fizesse tudo isso de acordo com a lei da lógica conhecida como Antecedente-Consequente. Se o “antecedente” é que “foi Deus quem determinou”, “consequentemente”, o homem não tem culpa e não poderia ser responsabilizado. Vejamos alguns textos que não deveriam estar na Bíblia da maneira como estão.
1. Em Gn 2.16-17 a Bíblia relata-nos que “e lhe deu esta ordem: de toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. Analisando, podemos perceber que Deus “deu uma ordem” para Adão não comer, mas se o decreto incondicional de tudo é verdadeiro, Deus em sua agenda oculta estaria dizendo: “Adão, eu te ordeno que não comas, mas eu já determinei na eternidade passada que você vai comer”. O mais interessante é que em 3.11 do mesmo livro Deus insiste: “comestes da arvore de que te ordenei que não comesses?”. E aplica a justiça ao homem que, segundo a teoria do decreto calvinista, não teve culpa, pois foi Deus quem havia determinado. Ainda no verso 17, ficamos sabendo que “e a Adão disse: visto que atendeste a voz de tua mulher, e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses: maldita é a terra por tua causa...”. Mas, espera um pouco, Deus deveria ter dito: “maldita é a terra por minha causa, já que eu determinei a queda e o pobrezinho do Adão não tem livre-arbítrio”. Na verdade, deveria ser assim. Vamos analisar outro texto.
2. Gn 4.7 nos informa também que “se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz a porta, o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo”. O problema maior é que Caim matou Abel. O primeiro homicídio cometido entre irmãos. Por este ato, Caim foi amaldiçoado (v. 11) e foi realmente um castigo (v. 13). Porém, segundo a doutrina do decreto incondicional na eternidade passada, quem ordenou que Caim matasse Abel foi Deus. Apesar de Deus ter dito na Bíblia: “eis que o pecado jaz a porta, o seu pecado será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo”. Deus, porém, deveria ter dito em sua agenda secreta: “Eu ordenei que Caim tivesse que matar Abel e ainda disse que Caim poderia se dominar e evitar cometer esse homicídio, mas coitadinho dele que o livre-arbítrio é um mito, ele teve que cumprir a minha vontade anteriormente estabelecida e eu ainda irei castigá-lo por isso”. É verdadeiramente repugnante pensarmos assim, porém, não existe outra interpretação.
3. Também no livro de Gn 6.11-13 lemos: “a terra estava corrompida à vista de Deus, e cheia de violência. Viu Deus a terra e eis que estava corrompida. Porque todo o ser vivente havia corrompido o seu caminho na terra. Então disse Deus a Noé: resolvi dar cabo de toda a carne, porque a terra está cheia da violência dos homens: eis que os farei perecer juntamente com a terra”. Aqui, mais uma vez, Deus “resolveu dar cabo de toda a carne”. Por quê? Bem, a terra estava corrompida, cheia de violência e violência dos homens. Porém, se tudo o que acontece foi por causa do desejo decretivo de Deus, sendo verdadeiro que Deus não reage às ações humanas, pelo fato do livre-arbítrio não existir, então foi Deus quem decretou que a terra ficasse cheia de violência e corrompida, para então poder matar todos os homens, que por sua vez, praticaram a violência e se corromperam porque Deus os corrompeu e tudo pelo decreto do próprio criador. Mas, ponto pacifico é que o Deus da Bíblia é Santo e a ninguém tenta (Tg 1.17). Vamos abordar outro texto.
4. Da mesma forma, em Gn 13.13 nos informa o texto Sacrossanto: “ora, os homens de Sodoma eram maus e grandes pecadores contra o Senhor”. Está explícito em consonância com outras passagens Bíblicas que as cidades das campinas eram, basicamente, Sodoma e Gomorra, e que, declara o trecho “eram grandes pecadores contra o Senhor”. Surge então a pergunta: qual o tipo de pecado cometido por aquela gente? Bem, Gn 19.5 nos informa que as ações e práticas estavam relacionadas com o homossexualismo. Deus destruiu Sodoma e Gomorra com fogo e enxofre (19.24) certamente pelo fato dos moradores serem grandes pecadores contra o Senhor, porém, mais uma vez, se tudo o que acontece, porque Deus decretou que acontecesse, então foi Deus, o próprio quem determinou na eternidade passada que os moradores de Sodoma e Gomorra cometessem “grandes pecados” contra ele mesmo, Deus. Que por sua vez, os matou por isso. Sem esquecermos o fato de que Deus havia prometido a Abrão que se houvesse dez justos na cidade, ele, por amor a estes dez, não permitiria esta hecatombe (18.32).
5. Vamos a um texto mais abrangente que envolve os mandamentos de Deus que percorreria os séculos. Em Êx 20.3-17 Deus concede a Moisés os Dez Mandamentos com prescrições gerais para todo o povo, que por sinal são ratificados no Novo testamento, com exceção da guarda do sábado que, como todos sabem, era exclusivo para Israel. Então, aqui Deus proíbe: ter outros deuses (v. 3), fazer imagens de escultura, adorá-las e prestar culto a elas (v. 4), tomar o Nome do senhor em vão (v.7), santificar o sábado (v.9), honrar pai e mãe, para que os dias se prolonguem (v.12), não matar (v.13), não adulterar (v. 14), não furtar (v. 15), não dizer falso testemunho (v. 16), e por fim, não cobiçar nada do próximo, nem casa, mulher, servo, serva, boi, jumento, nem coisa alguma. Mais uma vez o problema teima em não calar, pois se alguém tiver outros deuses, fizer imagens de escultura, adorá-las e lhes prestar culto, tomar o nome do Senhor em vão, desonrar pai e mãe, matar, adulterar, furtar, mentir e cobiçar, ele só terá feito isso porque Deus, em sua agenda oculta e contra o próprio mandamento proferido, determinou que tais pessoas assim agissem, por meio do decreto de “todas as coisas”, na eternidade passada. As pessoas só agiram assim porque Deus quis. As boas e, más ações não poderiam ser destacadas, porque tudo procede de Deus, não do homem. Sendo assim, o mandamento não faz sentido.
6. No livro Sagrado de Levítico, nos capítulos 18 e 20 existem passagens dignas de destaque aqui. No capitulo 18 Deus proíbe o povo a: chegar-se para descobrir a nudez da mulher durante a menstruação (v. 19), não deitar-se com a mulher do próximo (v. 20), entregar os filhos para dedicar-se a Moloque (v. 21), deitar-se com homem como se esse fosse mulher, ainda afirmando que é abominação (v. 22), nem o homem ou a mulher deitar-se com um animal (v. 23). Deus ainda afirma que os povos da terra estavam exatamente sendo lançados fora por terem-se contaminados com estas práticas abomináveis (v. 24-29). Deus, portanto encerra determinando que os israelitas, por obrigação, não deveriam praticar nenhuma destas abominações (v. 30). Em Levítico 20 a relação tende a aumentar. Deus proibiu entregar os filhos a Moloque sob pena de morte (v. 1-5), consultar necromantes e feiticeiros (v. 6), amaldiçoar pai e mãe (v. 9), adulterar (v. 10), deitar-se com a mulher do pai (v. 11), deitar-se com a nora (v. 12), deitar-se com outro homem (v. 13), um homem possuir a mulher e sua mãe (v. 14), ajuntar-se com animal (v. 15, 16), tomar a irmã, filha de seu pai (v. 17), visitar a mulher no tempo da menstruação (v. 18), descobrir a nudez das tias (v. 19, 20), tomar a mulher do irmão (v. 21), adverte o povo à santidade e à obediência às leis estabelecidas (v. 7, 8, 22), asseverando que toda esta relação de pecados horríveis eram praticados “por costume” pelos povos que haviam habitado a terra de Canaã e que Deus os estaria expulsando exatamente pela prática destes pecados, motivo pelo qual Deus os havia aborrecido. Fica patente a santidade de Deus sendo vindicada pela sua justiça através da lei da semeadura e da colheita. Porém, mais uma vez o dilema e a tensão aparecem. Se Deus decretou “todas as coisas”, isso inclui toda esta relação de pecados cometidos pelos cananeus e posteriormente pelos próprios israelitas. Deus estaria dizendo que estava lançando fora aquelas pessoas, para fora da terra por terem cometido tais abominações, advertindo os israelitas a não seguirem no mesmo exemplo de devassidão, mas a obedecerem às leis e à santificação, porém, Deus estaria dizendo na agenda oculta que se os cananeus pecaram tão gravemente, foi porque Deus determinou que pecassem. O povo santo que posteriormente pecaram, desobedecendo as ordens para obedecerem às leis, também só agiram deste modo porque Deus havia determinado, se este possível “decreto incondicional de todas as coisas” for verdadeiro não poderia existir outra interpretação. Apesar do fato do escritor sacro mencionar os pecados repugnantes para Deus como abominações (do Hb. to`evah) que significa “coisa abominável, detestável, ofensiva”, claramente referindo-se a todas as ações humanas relacionadas acima, bem como ao travestismo (v. Dt 22.5), ao homossexualismo (v. Lv 18.22), a idolatria (v. Dt 7.25, 26), e ao sacrifício infantil (v. Dt 12.31). Essa teoria do decreto “de todas as coisas” além de detestável (to`evah), torna-se irracional, pois coloca Deus como autor de ações que ele abomina. Vamos seguir em frente.
7. Êxodo 32 é mais um exemplo interessante. Moisés estava no monte recebendo a Lei e o povo ficou impaciente exigindo de Arão deuses de fundição. Arão cedeu (v. 1-5). Ofereceram holocaustos e ofertas pacíficas no dia seguinte, desencadeando uma grande orgia (v. 6). Chama-nos a atenção o que Deus diz a Moisés nos versos 7-10, que passarei a mencionar: “Então disse o Senhor a Moises: vai, desce, porque o teu povo, que fizeste sair do Egito, se corrompeu, e depressa se desviou do caminho que lhes havia eu ordenado. Fizeram para si um bezerro fundido, e o adoram, e lhe sacrificam, e dizem: são estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito. Disse mais o Senhor a Moisés: tenho visto a este povo, e eis que é povo de dura cerviz. Agora, pois, deixa-me, para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma, e de ti farei uma grande nação”. Do verso 11-13 segue-se a oração intercessória de Moises em prol dos revoltosos obstinados e idólatras. Quando Arão vai tentar explicar o motivo pelo qual tinha feito um bezerro de ouro, ele dá uma resposta esclarecedora. Ele disse: “tu sabes que o povo é propenso para o mal” (v. 22). O problema culminou em matança no meio do arraial (v. 25-29). Também ficou claramente estabelecido no texto que o povo cometeu grande pecado, tanto mencionado por Moisés (v. 30), tanto quanto mencionado pelo próprio Deus (v. 34-35). O problema mais uma vez teima em não calar: o decreto incondicional de todas as coisas é verdadeiro? Deus, de fato, determina todas as ações humanas e o livre-arbítrio é um mito como defendem os hipercalvinistas? Se a resposta for positiva, então, Deus é o responsável único por todos os acontecimentos também desta passagem em questão. Foi de Deus a decisão de induzir o povo a: pedir deuses, conceder o bezerro, praticar as orgias e sacrifícios ao bezerro, como também a decisão de matar os desenfreados, pasmem, pelo que eles estavam cometendo pela determinação do próprio Deus. Mas espera um pouco. Deus havia dito que o povo “se corrompeu e se desviou do caminho que ele (Deus) houvera ordenado” (v. 7-10), sabendo que ele próprio (Deus) havia determinado que os homens devessem cometer tudo aquilo? Ademais o fato de que toda a questão se encerra com o Senhor punindo os israelitas pelo pecado que o próprio Criador houvera determinado que cometessem (v. 35, apesar do que ele fala neste verso?). Isso não faz nenhum sentido.
8. Esta passagem me chama muito a atenção pelo fato de ter culminado no cativeiro Assírio e Babilônico do povo israelita. Em 2 Reis 17 o trecho sacrossanto mostra o cativeiro e o que causou de fato tamanha mazela entre os descendentes de Abraão. O real motivo é-nos mostrado a partir do verso sete. Vamos analisar: foram cativos porque pecaram contra o Senhor e temeram a outros deuses (v. 7); andaram nos estatutos das nações que o Senhor houvera lançado fora e nos costumes dos reis de Israel (v. 8); fizeram contra o Senhor o que não era reto e edificaram altos para si em todas as cidades (v. 9); levantaram colunas e postes-ídolos em todos os altos e debaixo de todas as árvores frondosas (v. 10); queimaram incenso nestes lugares e cometeram ações perversas para provocarem o Senhor a ira (v. 11); serviram os ídolos dos quais o Senhor os havia dito: não fareis estas coisas (v. 12); rejeitaram os estatutos e a aliança que Deus fizera com seus pais, rejeitando também as advertências acerca da desobediência e seguiram os ídolos, se tornaram vãos, seguiram as nações que estavam em derredor, das quais o Senhor lhes havia ordenado que não as imitassem (v.15); desprezaram todos os mandamentos do Senhor, fizeram para si imagens de fundição, dois bezerros, fizeram um poste-ídolo e adoraram todo o exército do céu, e serviram a Baal (v. 16); queimaram seus filhos e suas filhas como sacrifício, deram à prática de adivinhações, criam em agouros e venderam-se, mais um vez diz o texto, para fazerem o que era mal perante o Senhor, para o provocarem a ira (v. 17). Então, qual foi o resultado? Muito se indignou o Senhor contra Israel e os afastou de sua presença, só ficando Judá (v. 18). E o que fez Judá? Não guardou os mandamentos do Senhor e imitaram a Israel (v. 19); Deus entregou todo o povo nas mãos dos despojadores e os expulsou de sua presença (v. 20); apesar de o Senhor ter avisado pelo ministério de todos os seus servos, os profetas (v. 23); advertindo a Israel e a Judá que eles voltassem dos seus maus caminhos e começassem a guardar todos os mandamentos e estatutos, segundo toda a Lei que o Senhor houvera prescrito aos pais por intermédio dos profetas (v. 13). Mas, o que os israelitas fizeram? Não deram ouvidos, se tornaram obstinados e de dura cerviz e não creram no Senhor (v. 14). Novamente a teoria do decreto incondicional de todas as coisas na eternidade passada defendida pelos hipercalvinistas recebe mais um duro golpe da Santa Escritura. Seria o Deus da Bíblia aquele que adverte e aconselha as pessoas a abandonarem seus pecados para não serem punidos, os conclamando à obediência aos santos mandamentos, para depois, em sua agenda secreta os obrigar de forma eficaz a cometerem toda a sorte de pecados gravíssimos e contra o próprio Deus para depois puni-los e castigá-los pela desobediência que Deus havia decretado? Isso mais se parece com uma peça de teatro de terror em que o Santo Senhor planeja, executa e pune os pecados dos homens. Essa teoria só pode formar pessoas revoltadas contra o Senhor. Não faz sentido, pois os homens foram punidos por suas atitudes e isso é explicito no texto em destaque.
9. O profeta Isaías com seu ministério de 40 anos começa seu esplendoroso livro com um testemunho devastador. No capítulo 1 e verso 2 ele afirma enfaticamente: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o Senhor é quem fala: criei filhos, e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim”. Aqui, mais uma vez, o Senhor dos exércitos está dizendo que “eles estão revoltados contra mim”, contudo, seria até mesmo irracional pensarmos que Deus disse tal coisa e aceitassemos que Deus decretou eficazmente que os israelitas se “revoltassem contra ele”. No verso 4 Ele continua dizendo: “ai desta nação pecaminosa, povo carregado de iniqüidade, raça de malignos, filhos corruptores; abandonaram o Senhor, blasfemaram do Santo de Israel, voltaram para trás”. E ainda que eles estão em rebeldia (v. 5). Pensar que Deus determinou o que é mencionado nestes textos é contradizer o que o próprio Deus está asseverando de forma clara. Não foi Deus quem os fez estar em rebeldia, blasfemando “do Santo de Israel”, pois ele iria determinar que as pessoas blasfemassem contra ele mesmo? Isto é até ofensivo. O problema não encerra por ai. No verso 10, Deus compara os príncipes do seu povo a “Príncipes de Sodoma”. E o povo a “povo de Gomorra”, e ainda se queixa dos sacrifícios, afirma estar farto dos holocaustos de carneiros, da gordura de animais cevados e que nem se agrada do sangue de novilhos, cordeiros e bodes (v. 11); o incenso é abominação, as luas novas também, os sábados e as convocações das congregações, é aqui que Deus afirma algo muito contundente, quando relata: “não posso suportar iniqüidade associada ao ajuntamento solene”. Deus não suporta iniqüidade com o ajuntamento solene? Bem, como os calvinistas asseveram que Deus determina todas as ações, isso deve incluir este comportamento “pecaminoso, revoltoso e blasfemo” (v. 2, 4, 11, 13) da nação, apesar do fato de Deus estar lamentando abertamente que “não suporta iniqüidade”. Esse é o mesmo Deus que os determina? Claro que não! Porém, ele exige santidade e purificação (v. 16, 17), e convida a todos ao arrependimento e à escolha quando fala: “se quiserdes, e me ouvirdes, comereis o melhor desta terra. Mas, se recusardes, e fordes rebeldes sereis devorados à espada; porque a boca do Senhor o disse. Sião será redimida pelo direito, e os que se arrependem, pela justiça. Mas os transgressores e os pecadores serão juntamente destruídos; e os que deixarem o Senhor perecerão” (1.19, 20, 27, 28). Devemos, portanto acreditar que Deus oferece direito de escolha a pessoas que não tem esse direito? Estaria Deus afirmando na Escritura “se quiserdes, se ouvirdes” a pessoas que ele sabe que não poderia “querer, ouvir, aceitar e recusar” as suas palavras? Estaria Deus asseverando: “escolha”, mas em sua agenda oculta sussurrando: “você não pode escolher, você só pode decidir o que eu já havia decidido por você”. Não é isso que a Santa Escritura está mostrando, mas justamente o contrário.
Estou, de fato, sendo muito resumido, mostrando apenas alguns trechos, dentre as centenas em toda a Bíblia que se chocam frontalmente com esta teoria filosófica do decreto de todas as coisas. Portanto, antes da conclusão quero deixar o profeta Ezequiel deixar seu testemunho.
10. Ezequiel fora comissionado como atalaia de Israel (3.16-21; 33.1-9). A atalaia deveria ouvir da parte do Senhor e avisar os homens (v. 17). O texto fala por si mesmo: “quando eu disser ao perverso: certamente morrerás; e tu não o avisares, e nada disseres para adverti-lo do seu mau caminho, para lhe salvar a vida, esse perverso morrerá na sua iniqüidade, mas o teu sangue da tua mão o requererei. Mas, se avisares o perverso e ele não se converter da sua maldade e do seu caminho perverso, ele morrerá na sua iniqüidade, mas tu salvaste a tua alma” (3.18, 19). Em primeiro lugar, se esse decreto de “todas as coisas” é verdadeiro, então: 1 – Deus decretou que o perverso seria “perverso”; 2 – que o profeta não avisaria e nem o advertiria do seu mau caminho, para lhe salvar a vida; 3 – que esse perverso iria, de fato, morrer na iniqüidade, pelo profeta não tê-lo avisado; e 4 – o profeta seria requerido por Deus por não tê-lo avisado (v. 18). Ou, 1 – Deus decretou que o profeta o avisaria; 2 – decretou também que o perverso não iria se converter do seu mau caminho e da sua maldade; 3 – ele deveria morrer na sua maldade; 4 – Deus decretou que o profeta não seria requerido por tê-lo avisado (v.19). Mais uma vez o problema urge. Ainda que Deus esteja afirmando a responsabilidade pessoal de cada individuo, a filosófica teoria assevera, e assim devemos entender por não ter outra saída, que tudo é o desejo de Deus. Porém, essa possibilidade só encontra respaldo na “agenda secreta” e não na Bíblia. Vamos analisar mais dois versículos: “também quando o justo se desviar da sua justiça, e fizer maldade, e eu puser diante dele um tropeço, ele morrerá; visto que não o avisaste, no seu pecado morrerá, e suas justiças que praticara não serão lembradas, mas o seu sangue da tua mão o requererei. No entanto, se tu avisares o justo para que não peque, e ele não pecar, certamente viverá, porque foi avisado; e tu salvaste a tua alma” (v. 20, 21). Em segundo lugar e novamente, se esse decreto de todas as coisas for verdadeiro, então: 1 – Deus havia decretado que alguém seria justo e iria praticar justiças; 2 – no mesmo decreto estava a verdade de que este justo iria se desviar e iria fazer maldade e por causa disso, Deus iria colocar diante dele um tropeço (recompensa ou lei da semeadura e da colheita) e ele morreria; 3 – no decreto estaria incluído também que o profeta não o avisaria e por causa disso ele, o justo que se desviou, morreria no pecado; 4 – as justiças que Deus outrora havia determinado que ele praticaria seriam esquecidos; 5 – o profeta seria requerido por não tê-lo avisado, apesar do fato de que se o profeta não o avisou, e o decreto é de fato “de todas as coisas”, então, Deus havia decretado que ele não o avisasse, mas, mesmo assim iria requerer do profeta por não ter avisado (v. 20). Isso mais se parece com uma cena de teatro de fantoches. Ou então, 1 – Deus decretou que o profeta avisaria o justo para que não peque; 2 – no mesmo decreto deveria estar o fato de que ele não pecaria exatamente porque foi avisado e viveria; 3 – o profeta não seria requerido (v. 21). Esta teoria traz mais problemas do que soluções em textos claros como estes.
Curiosamente, e contra todas as possibilidades desta teoria apresentada, podemos encontrar calvinistas “supralapsarianos” escrevendo como verdadeiros arminianos. Nada mais, nada menos que Arthur W. Pink, no artigo “A Cruz e o Eu”, publicado na revista “Fé para Hoje”, número 26, do ano de 2005, página 27, o qual ele discorre sobre o texto de Mt 16.24 que diz: “Então disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si se negue, tome a sua cruz e siga-me”. Passarei a mencionar suas próprias palavras. Ele afirma que “necessita fazer algumas considerações sobre os termos”. E prossegue, 1 - “se alguém – o termo utilizado refere-se a todos os que desejam unir-se ao grupo de seguidores de Cristo e alistar-se sob a bandeira dEle”. Note, a princípio que ele, Pink, fala de pessoas que ainda não seguem a Cristo, pois estes “desejam unir-se” ao grupo de seguidores. Depois continua 2 - “se alguém quer – o grego é muito enfático, significando não somente a anuência da vontade, mas também o propósito completo do coração, uma resolução determinada”. 3 – “vir após mim – como um sujeito ao seu Senhor, um aluno ao seu mestre, um soldado ao seu capitão”. 4 – “negue – o vocábulo grego significa negue-se completamente. Negue-se a si mesmo - a sua natureza pecaminosa e corrupta”. 5 – “tome – não quer dizer passivamente, e sim assuma voluntariamente, adote ativamente”. Podemos perceber que a “vontade” humana não pode ser disfarçada dentro da Santa Escritura, mas assumida de forma incondicional. Porém, a tensão e a contradição parecem teimar em permanecer, pois, nada deve depender da vontade, mas do decreto de Deus e se isso for verdade, essas palavras de Pink também não têm importância, como os dez textos analisados acima. Se o “decreto incondicional de todas as coisas na eternidade passada” é verdadeiro, o que devemos fazer de textos como esses? Estaria Deus zombando de sua criação? Tudo seria apenas uma grande peça de teatro em que fantoches sem vontade estariam sendo manipulados ou usando uma vontade inverídica? Estaria Deus ordenando que a salvação seja pregada a pessoas que nunca poderia sequer desejar recebê-la? Estaria Deus urgindo ameaças, conselhos e mandamentos a pessoas que não poderiam evitar cometer o que estão cometendo? O Deus apresentado pelo calvinismo seria o mesmo da Bíblia ou poderia mais se parecer com o apresentado pelo Islamismo ou pelo Panteísmo “mutilado” de Hitler? Deus, por sua vez afirma: “não tenho falado em segredo... falo a justiça, e proclamo o que é reto” (Is 54.19). Erasmo reconhecia e usou isto contra Lutero em seu debate sobre o livre-arbítrio: “Se não está dentro da capacidade de todo homem cumprir o que é comandado, todas as exortações nas Escrituras, e todas as promessas, ameaças, repreensões, censuras, abjurações, bençãos, maldições e os inúmeros preceitos, são necessariamente inúteis.”.[11] Concluo esta breve análise usando um pensamento do grande Pastor Metodista John Wesley: “Ele não punirá ninguém por fazer qualquer coisa que não poderia possivelmente evitar, nem por omitir qualquer coisa que não poderia possivelmente fazer. Toda punição supõe que o ofensor poderia ter evitado a ofensa pela qual ele é punido. De outra forma, puni-lo seria claramente injusto, e inconsistente com a característica de Deus nosso Governador”[12]. A suposta “agenda oculta” de Deus é uma verdadeira utopia sendo verdadeiro o que a Bíblia fala, portanto, esse possível decreto calvinista é naturalmente falso.
Walson Sales é Diácono da AD em Recife-PE e seminarista do 4º ano da ESTEADEB.
[1] Susanna Wesley, citado em A. W. Harrison, Arminianism (Londres: Duckworth, 1937), p. 189. Citado no livro “O Outro Lado do Calvinismo” de Laurence M. Vance.
[2] John S. Feinberg, “Deus Decreta Todas as Coisas,” Predestinação e Livre-Arbítrio, ed. David Basinger e Randall Basinger (São Paulo: Mundo Cristão, 2000), 34. Citado no livro “A Graça de Deus e a Vontade do Homem” de Clark H. Pinnock.
[3] Augustus Toplady, prefácio, Zanchius, Absolute Predestination, 14. Esta é parte de uma citação do “Sermão sobre a Providência, a partir de Mt 10.29, 30” do bispo Hopkins. Citado no livro “A Graça de Deus e a Vontade do Homem” de Clark H. Pinnock.
[4] Loraine Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination (Grand Rapids: Eerdmans, 1932), 13. Citado no livro “A Graça de Deus e a Vontade do Homem” de Clark H. Pinnock.
[5] Berkhof, Systematic Theology, 100. Citado no livro “A Graça de Deus e a Vontade do Homem” de Clark H. Pinnock.
[6] Pink, Deus é Soberano, 84.
[7] R. C. Sproul, “Discerning the Will of God,” Our Sovereign God, ed. James M. Boice (Grand Rapids: Baker, 1977), 105. Citado no livro “A Graça de Deus e a Vontade do Homem” de Clark H. Pinnock.
[8] Herman Bavinck, The Doctrine of God, ed. e tr. William Hendriksen (Grand Rapids: Eerdmans, 1951), 371. Citado no livro “A Graça de Deus e a Vontade do Homem” de Clark H. Pinnock.
[9] C. Samuel Storms, The Grandeur of God (Grand Rapids: Baker, 1984), 80. Citado no livro “A Graça de Deus e a Vontade do Homem” de Clark H. Pinnock.
[10] Geisler, Norman. Eleitos, mas Livres. Ed. Vida, pág 155.
[11] Ronald VanOverloop, “Calvinism and Missions: 1. Total Depravity,” Standard Bearer, 15 de setembro de 1992, p. 493. citado no livro “O Outro Lado do Calvinismo”.
[12] John Wesley, citado em Wood, p. 211 e disponível no livro “O Outro Lado do Calvinismo”.
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