Bruce Reichenbach
A segunda peça a ser montada em nosso quebra-cabeça denomina-se soberania divina. Soberania traz à memória o relacionamento político governamental. Implica em que há, pelo menos, dois tipos de indivíduos: governo e governados, entre os quais paira um relacionamento regido por leis. O governo, ou soberano, tem autoridade e poderes. A autoridade é legislativa ou executiva. Em seu papel legislativo, o soberano cria leis mediante as quais os governados se mantêm em ordem. O soberano pode criar leis básicas (por exemplo, redigir a constituição), ou pode emitir leis subsequentes que apoiam determinadas leis anteriores (as quais poderiam ser denominadas leis secundárias, ou reguladoras). Em sua função executiva, o soberano faz cumprir tais leis. O soberano também possui poderes, limitados ou ilimitados. O relacionamento do soberano com as leis fundamentais, e a fonte da autoridade desse soberano ajudam a determinar que tipo de poderes ele detém, quais são seus limites, e até que ponto podem ser exercidos. Se houver um corpo orgânico de leis, os poderes do soberano são determinados e limitados por estas leis. Se os poderes do soberano derivam do voto dos governados, tais poderes serão, então, limitados pelos governados, cuja delegação de poderes poderá ser retirada sob certas circunstâncias. Historicamente, impostos e recrutamentos militares não autorizados são exemplos de tais circunstâncias![1]
Ser soberano não significa que tudo quanto acontece está de acordo com a vontade do soberano, nem que este pode fazer acontecer qualquer coisa que deseje. A habilidade do soberano na determinação dos fatos depende, em parte, da liberdade concedida aos governados. Se as pessoas submissas ao soberano tiverem liberdade, este poderá fazer que aconteçam algumas coisas. Por exemplo, o soberano não pode obrigar seus súditos a reconhecerem livremente sua soberania. O soberano pode compelir seus súditos a inclinar-se em sua presença, porém, não pode compeli-los a inclinar-se livremente. Quanto mais liberdade o soberano conceder a seus súditos, menos poderá controlar o comportamento deles, sem retirar-lhes a liberdade concedida. Ao conceder liberdade significativa a seus súditos, o soberano faz que seja possível que sua autoridade e vontade enfrentem resistência. Se o soberano ordena a seus súditos que façam algo, sendo eles inteiramente livres, poderão recusar-se a obedecer, embora, ao mesmo tempo, devam arcar com as consequências de sua desobediência. O soberano poderá exigir que seus súditos ajam como ele quer, mas ao custo elevado de outros aspectos de sua soberania. Por exemplo, se o soberano procurar eliminar certos males que resultaram diretamente da concessão da liberdade de expressão (por exemplo, escrever e distribuir material pornográfico), ele poderia simultaneamente limitar de algum modo a disseminação de pensamentos e ideias.
Os crentes ortodoxos creem que Deus é soberano; Ele exerce autoridade e poder sobre Sua criação. Encontramos afirmações disto tanto no Velho Testamento (1 Crôn. 29:11; Sal. 115:3) como no Novo (a parábola do dono de casa rico, de Mat. 20:1-6, e a analogia do oleiro, em Rom. 9:19-24). O alicerce da posição de Deus não está num contrato social, mas no fato de ser Ele o criador e mantenedor do universo. Deus fez todas as coisas e continua a sustentar o universo “pela palavra do Seu poder” (Heb. 1:3; veja-se, também, Neem. 9:6; Sal. 104:29; Col. 1:17). Uma noção elevada da soberania divina fundamenta-se num tipo de contrato social. Deus determinou que haveria de celebrar um pacto com certo povo. Todas as nações da terra haveriam de ser abençoadas através daquele povo. Todas as leis desse estado teocrático eram de origem divina. Assim, a soberania divina era exercida mais diretamente sobre aqueles que se colocavam sob aquele pacto. Quando os israelitas quiseram um rei mortal reinando sobre eles, de tal maneira que passariam a ser como as nações ao seu redor, Deus exprimiu Sua insatisfação, porque só Ele deveria ser rei em Israel (1 Sam. 8:7-9). A igreja, como o novo Israel, permanece num relacionamento semelhante quanto à soberania especial de Deus, sob o novo pacto (Gál. 6:15,16; Heb. 7:22).
É preciso máxima clareza para distinguir um soberano de um romancista. Este cria seus próprios personagens, o enredo, a ambientação e o desenrolar da história. Todos os participantes da novela fazem exatamente aquilo que o autor determinou. Todos eles possuem traços predeterminados, não tendo existência à parte: são o produto do autor. O enredo encaminha-se inexoravelmente para o fim determinado pelo autor. Ocorre apenas aquilo que ele quis que acontecesse, com precisão; não pode haver variação.
Deus, em Sua função de soberano, frequentemente tem sido confundido com um autor de novelas. Tem-se afirmado que Deus tem a habilidade privativa de determinar as pessoas que serão criadas, de que modo o serão, o que farão, o que falarão, qual será o enredo em detalhes, de que maneira os fatos acontecerão, e não de modo geral, mas em particular, para cada indivíduo.
Entretanto, tal perspectiva da soberania divina dificilmente poderia considerar-se adequada. Sobre quem é Deus soberano? Segundo tal perspectiva, Ele não é soberano sobre criaturas que podem livremente reportar-se a Ele. Na verdade, neste cenário não existe liberdade nenhuma. Como num romance fictício, os participantes, na melhor das hipóteses, exercem apenas um livre-arbítrio aparente ou ilusório. Pensam que são livres, e que suas escolhas realmente são suas. Na verdade, Deus já predeterminou que os personagens não poderão escolher senão de acordo com um padrão. Consequentemente, a criação transforma-se numa novela muito bem coordenada, mas bastante enganadora, visto dar a ilusão de livre-arbítrio, ao invés de ser a história da soberania divina sobre criaturas responsáveis, capazes de comunicar-se.
Fonte: David e Randall Basinger, Predestinação e Livre-Arbítrio, pp. 133-136
[1] Soberania também tem conotações de excelência, de glória e majestade, que não são, contudo, parte da definição. Um soberano poderá ser supremamente cruel, mau, ou viver em pobreza e imundícia.
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