quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Anabatismo e Reforma Radical

Jonathan Menezes




Um olhar para qualquer fenômeno histórico com certo nível de complexidade exige, como corolário, a assunção de tal complexidade e uma delimitação ou recorte. Geograficamente, meu recorte aqui privilegiará um olhar para o anabatismo desde seu berço, na Suíça, e outros focos na Europa Central. Em um segundo momento, desejo explorar um pouco sobre a relação dos cristãos anabatistas com o mundo, o que nos conduzirá a um possível entendimento de sua visão sobre a relação Igreja-Estado. Por fim, ainda nessa direção, recairá sobre as marcas da igreja e da vida cristã, ou, em outras palavras, o que fez com que os anabatistas fossem o que foram. Quem foram os anabatistas do século XVI? Quais características que os distinguem e demarcam sua identidade? Como se deu sua relação com os demais reformados? Quais foram as possíveis motivações do movimento?

O Anabatismo: início, focos de expansão e martírio


Primeiro: quem foram os anabatistas e quais seriam algumas marcas distintivas desse grupo? Podemos dizer, grosso modo, que os anabatistas foram, de certa maneira, “filhos bastardos da reforma”, não para reforçar o teor pejorativo dessa declaração, mas para destacar o lado crítico e periférico de sua relação com os demais movimentos reformadores. Enquanto “filhos da reforma”, os anabatistas endossaram alguns dos preceitos nela estabelecidos, como o do apreço pela autoridade das Escrituras. Segundo Earle Cairns (1995, p. 248), “a insistência de Zwínglio na Bíblia como fundamento da ação dos pregadores encorajou a formação de conceitos anabatistas baseados na Bíblia”.


Cedo, porém, eles ficaram conhecidos mais por suas discordâncias dos que por pontos de acordo com a Reforma. O princípio de sola Scriptura não era mais suficiente, especialmente quando, na prática, não havia sido capaz de confrontar certas estruturas temporais. Um aporte mais radical começou a ser desejado por alguns espíritos menos conformados. Conforme o olhar de Bard Thompson, eles começaram a suspeitar da idéia de um corpus Christianum em torno do qual toda a sociedade, inclusive os “mornos na fé”, seria reunida. Também passaram a duvidar da integridade da “Reforma Magisterial” (mais focada no ensino), qual seja, a de Lutero, Zwínglio, Calvino ou da Igreja da Inglaterra, no qual o papel dos ministros não muito se diferenciava do papel do padre na Igreja Católica (centralizador), e em que a autoridade secular (Estado) seria uma expressão da divina providência sobre a criação.


O primeiro foco de aparecimento desse descontentamento se deu na Suíça, talvez em função da, até então, ligeira liberdade civil e religiosa que se encontrava no país. Ulrico Zwínglio é quem originalmente havia estabelecido a reforma na Suíça de língua alemã. Devido às suas divergências teológicas com Lutero, as igrejas que diziam ser suas filhas espirituais passaram a se chamar “reformadas”, para se diferenciar das “luteranas”.


Dentre os seguidores da reforma zwingliana estavam Félix Manz (1500-1527) e Conrado Grebel (1498-1526), ambos eruditos e humanistas, educados nas melhores universidades da Europa. Outros eram os sacerdotes Simão Stumpf, Jorge Blaurock, Guilherme Reublin e João Brotli.


No início, associaram-se a Zwínglio por sua ênfase na autoridade das Escrituras e pela reforma social mais ampla por ele proposta. Depois entenderam que seu endosso ao ensino primitivo do batismo infantil, bem como sua prudência, patriotismo e “atraso” (do ponto de vista dos descontentes) em relação a mudanças mais radicais eram um impedimento sério para o avanço da reforma em outras frentes, como a abolição da missa, o uso de imagens e o papel das autoridades em questões religiosas. Assim, por volta de 1523, concluíram que a liderança de Zwínglio era um tanto quanto “conservadora”, resolvendo dele se afastar, não somente nas ideias, como na prática (Cf. Walker, 1981, p. 40).


Começaram se reunindo em pequenas convenções para estudo da Palavra, ou nas casas onde se tinha maior liberdade para a pregação e um discipulado pessoal. Assim, no outono de 1524 Grebel e seus correligionários passaram a rejeitar a coleta dos dízimos, que eram recolhidos pelo Estado para suporte dos ministros e outras questões, e, principalmente, aboliram o batismo infantil de seu meio. Para os anabatistas, o batismo era o distintivo do discipulado e compromisso cristão. E como somente um adulto seria capaz de se comprometer de tal maneira, então somente o batismo adulto poderia ser legítimo.


O conselho de Zurique começou a pressionar Zwínglio no sentido de que este se reunisse com os radicais para tentar um acordo pacífico. De acordo com Dionísio Byler (2000, p. 02), Félix Manz apresentou um recurso solicitando um debate público sobre a questão do batismo. Recurso aceito pelo conselho. No dia da reunião, porém, a situação se inverteu: ao invés de um debate aberto, o que se viu foi um decreto da parte do conselho, de que os filhos recém-nascidos deveriam ser batizados e que qualquer casal que se recusasse a fazê-lo deveria ser expulso do distrito. Tudo isso em 18 de janeiro de 1525. Era um aviso de que a força seria empregada, se necessário fosse, para que tal ordem se cumprisse.


Inicialmente a questão do batismo havia sido postulada apenas no âmbito da rejeição ao batismo infantil, como preceito não biblicamente fundamentável. Mas um episódio em especial marcou o anabatismo como sendo, na época, uma espécie sectária e sediciosa de protestantismo. Após aquela reunião, Grebel, Manz e os demais resolveram se reunir para orar na casa da mãe de Manz. Segundo Byler (2000, p. 02), uma antiga história contada pelos irmãos huteritas, relata aquele encontro (ao qual traduzo livremente abaixo):

Ficaram reunidos por muito tempo e uma profunda angústia se apoderou de seus corações. Começaram a dobrar os joelhos diante do Deus, que é exaltado nos céus, clamando a Ele como a quem sabe o que vai nos corações dos homens, rogando que lhes permitisse fazer sua vontade divina e que lhes mostrasse sua misericórdia; porque a carne, sangue e imaginação humanas não era o que os impulsionava. Bem sabiam o que teriam de sofrer e aguentar por causa disso. Depois da oração, Jorge Blaurock se levantou e pediu a Conrado Grebel que, pelo amor de Deus, lhe batizasse com um batismo cristão verdadeiro, como consequência de sua fé e confissão. Já que este estava de joelhos, implorando com um desejo tão comovente, Conrado o batizou, pois não havia nenhum ministro ordenado presente para fazer tal coisa. Uma vez feito isto, os demais da mesma maneira pediram a Jorge que os batizasse, o qual o fez porque eles pediam. Assim, com grande temor a Deus, encomendaram-se uns aos outros ao nome do Senhor, mutuamente se reconheceram como ministros do Evangelho, e começaram a pregar e guardar a fé. Desse modo se iniciou a sua separação do mundo e suas obras perversas.

Esse evento mexe com muita coisa num horizonte já suficientemente complicado. O grupo passou a ser chamado pejorativamente pelos seus opositores de “anabatistas”, palavra que designa aquele que rebatiza (1). Inicialmente os batismos aconteciam por efusão (derramamento de água). Mas em fevereiro de 1525, houve outro episódio em que um membro da congregação de Baltasar Hubmaier pediu pra ser batizado por imersão nas águas do rio Reno. Segundo Bard Thompson (1996, p. 466), ali se deu o começo do batismo por imersão na tradição anabatista – e que, acrescento, continuaria sendo tempos depois “pedra de toque” de divisões entre cristãos protestantes.


William R. Estep parece seguir a mesma linha de raciocínio quando afirma que, após seu batismo pelas mãos de Grebel, Blaurock passou a batizar todos os outros presentes e assim, consecutivamente, tal prática começou a se espalhar pelas comunidades nas mais diferentes regiões. Os novos batizados, dessa forma, “se comprometiam como verdadeiros discípulos de Cristo a viver vidas separadas do mundo e a ensinar o Evangelho e manter a fé”. Com esse primeiro batismo, ainda segundo Estep, o “anabatismo” e a igreja primitiva dos irmãos suíços haviam nascido. Como ele defende tendenciosamente, “nenhum outro evento simbolizou tão plenamente a ruptura com Roma. Aqui, pela primeira vez no curso da Reforma, um grupo de cristãos se preocupou em formar uma igreja com base no que foi concebido para ser o caminho neotestamentário” (Estep, 1996, p. 14).


Preciosismos à parte, não me parece ser à toa que alguns (como Bard Thompson, 1996) chegaram a considerar o anabatismo, em termos contemporâneos, como a “esquerda” da Reforma. Ou, na interpretação de Juan Driver (2), o significado deste e de outros atos não se concentrava tanto no batismo em si – como um olhar superficial nos faria pensar – mas na

Criação de uma nova forma de igreja, uma comunidade concreta e livre da dependência da autoridade civil para seu estabelecimento, na qual os membros se comprometem mutuamente a dar e receber conselho fraternal em seu seguimento de Cristo. Ademais, o simbolismo do lavamento só tem sentido conquanto a realidade espiritual simbolizada, o andar em novidade de vida, também esteja presente (Driver, 2000, p. 03).

Perseguição e martírio


Com o confronto não somente no horizonte religioso (igreja), mas também público (estado), não tardaria para que se iniciasse uma verdadeira “caça as bruxas” em relação aos anabatistas. Alguns exemplos de perseguição e martírio entre os anabatistas podem ser aqui listados.


Em 7 março de 1526 o conselho municipal de Zurique publicou um edito no qual se previa a prisão e morte daqueles que praticassem os atos de rebatismo. Em 19 de novembro do mesmo ano, o conselho aprovou uma nova lei, que não somente condenava à morte os praticantes do rebatismo, como estendeu tal pena aos que pregassem ou simplesmente atendessem às pregações anabatistas.


Conrado Grebel, que fora um dos primeiros líderes do movimento, faleceu na prisão no verão de 1526, vítima da peste. Experimentou o princípio da perseguição e capturas, mas não do martírio (assassinato). Já Félix Manz não teve a mesma “sorte”. Como primeiro mártir do movimento anabatismo, morreu afogado no rio Limmat em 5 de janeiro de 1527.


Conforme se intensificava a perseguição, a tendência de alguns grupos anabatistas foi a de se exilar em outras regiões que, ao menos de início, se mostravam mais tolerantes. Blaurock, por exemplo, por não ser cidadão de Zurique, foi condenado ao exílio perpétuo, após ter sido açoitado pelas ruas da cidade.


Caso similar foi o de Baltasar Hubmaier, sacerdote de um povoado austríaco chamado Waldschut, que, depois de ter (re)batizado sua paróquia quase inteira, teve de se exilar “voluntariamente” na região da Morávia, mais precisamente em Nicolsburgo. Após vivenciar problemas, como a controvérsia local entre os anabatistas não-violentos e outros, sob a liderança de Hans Hut, que apregoavam a não obediência à violência e o pegar em espadas se preciso fosse, Hubmaier foi capturado, conduzido a Viena e, depois de sessões de tortura e interrogatório, foi condenado por heresia e sedição e queimado vivo em praça pública. Sua esposa foi afogada poucos dias depois (cf. Byler, 2000, p. 05; Driver, 2000, p. 08).


O grupo de seguidores de Hubmaier estaria fadado a ser extinto, após dispersão decorrente da morte de seu líder espiritual. Finalmente conseguiram refúgio nas terras de Auspitz. Ali se encontraram com o líder do movimento radical em Tirol, Jacó Hutter, que também buscava lugar de refúgio aos perseguidos em sua terra. Segundo Byler (2000, p. 06), “Hutter foi o líder necessário para organizar a convivência em comunidade de tal maneira que se solucionaram seus problemas”, ou pelo menos parte deles. Uma de suas estratégias de organização do povo frente à forte perseguição foi o de dividir a comunidade em agrupações menores para chamar menos atenção dos agentes imperiais. Todavia, foi surpreendido e preso junto com sua esposa, sendo julgado, torturado e morto (queimado em fogueira) em 25 de fevereiro de 1536 (cf. Driver, 2000, p. 08).


Dentre tantos outros casos de perseguição e martírio, um dos mais notáveis episódios se deu na cidade alemã de Münster, não muito longe da fronteira com a Holanda, onde houve uma grande rebelião anabatista. Tudo parece ter começado através da pregação de Melchior Hoffman, que foi o ponto de conexão entre correntes do anabatismo na Suíça, Alemanha e Holanda. Ele atuava juntamente à comunidade anabatista de Estrasburgo, principal centro anabatista alemão entre 1526 e 1533. Era representante de um lado apocalíptico da reforma anabatista, pois considerava Lutero um “apóstolo dos começos”, como um Judas, e proclamava a si mesmo um “apóstolo do fim” (Walker, 1981, p. 45-46). Isto, pois, segundo Latourette (2006, p. 1060), Hoffmann predissera “que após seu aprisionamento e morte ele retornaria, em 1533, com Cristo nas nuvens do céu, que os ímpios seriam julgados e a Nova Jerusalém seria estabelecida em Estrasburgo”.


O resultado dessa pregação tem pelo menos três frentes: (a) Hoffmann foi preso por duas vezes, sendo que escapou na primeira e, na segunda, foi condenado de vez à prisão pelo Sínodo de Estrasburgo, que se reuniu entre 10 a 13 de junho de 1533. Hoffmann permaneceu preso até sua morte 10 anos depois, em 1543, aparentemente ainda convicto e esperançoso até o final. (b) Nos anos que seguiram sua prisão, o norte alemão e os Países Baixos haviam sido diretamente afetados por sua pregação, e a mensagem apocalíptica se tornou popular. (c) Por fim, ela tomou lugar na cidade de Münster, onde, segundo Dionísio Byler (2000, p. 06), “as classes sociais inferiores daquela região estavam tão oprimidas e viviam em tal desespero que a mensagem do retorno de Cristo em 1533 foi recebida com alvoroço pelas massas populares”. Havia um pregador chamado Jan Matthys, que se considerava profeta e sucessor de Hoffmann, e enviou 12 apóstolos, de dois em dois, para proclamar a “boa notícia”. Desta feita foi que esses descobriram que em Münster havia alguns crentes nessa mensagem e que convidavam Hoffmann a ir até lá. Ele não só foi como ali afirmara ter recebido uma “nova revelação”, a qual dizia não mais ser Estrasburgo, e sim Münster, o lugar no qual iria se estabelecer a “nova Jerusalém”.


Pouco tempo depois, ele acabou morrendo em uma emboscada, e seu sucessor foi Jan de Leiden, junto a outros líderes. Este governava a cidade com mãos de ferro e chegou a instituir a poligamia ali. Eles também tentaram construir o que criam ser uma “sociedade cristã”. Mas logo foram cercados pelo bispo, o qual foi ajudado por luteranos e católicos. Assim, Jan de Leiden e todos os líderes anabatistas daquela cidade foram presos e exibidos publicamente em jaulas, onde foram torturados e mortos. Esse episódio ficou marcado na história anabatista e confirmaria “o péssimo odor ligado ao nome deles” naquele momento (Latourette, 2006, p. 1061).


Diante de tantas perseguições e ameaça de extinção, o grupo dos anabatistas ficou mais uma vez disperso pelas muitas regiões por onde havia se espalhado. Um dos grupos que conseguiu sobreviver foi o dosMenonitas. Esse nome foi derivado de seu líder e responsável pela “renascença do Anabatismo”, o holandês Menno Simons (1496-1561). Menno serviu como sacerdote católico em sua terra natal, Friesland ocidental, até que se convenceu de que essa Igreja, Lutero, Zwínglio e Calvino estavam errados, especialmente no consenso quanto ao batismo infantil, e que apenas o batismo adulto tinha base nas Escrituras. Foi então batizado (renunciando sua matriz católica) e passou a atuar como ministro anabatista.


Segundo Bard Thompson, Menno foi o maior teólogo da tradição anabatista, defendendo um anabatismo biblicamente fundamentado, e tendo publicado em 1540 sua obra “Fundação da Doutrina Cristã”, que serviu como meio de estabelecimento de sua autoridade perante os anabatistas no norte da Europa. Devido à perseguição e ameaça de morte, viveu na clandestinidade por muito tempo, tendo de se mudar várias vezes, embora tivesse esposa e filhos; passou por Bélgica, Dinamarca e Polônia, ajudando a organizar comunidades ali. E, de acordo com Byler (2000, p. 07), apesar dos 100 floríns (moeda holandesa na época) oferecidos em ouro por sua cabeça, “Menno foi um dos únicos anabatistas de sua geração que morreu em sua própria cama, já idoso. Sua mulher e seus três filhos não puderam sobreviver à dureza da vida de pródigos”.


As relações com o mundo e marcas da Igreja e vida cristãs no Anabatismo

Além disso, o evangelho e seus adeptos não devem ser protegidos pela espada, nem eles devem proteger a si mesmos, o que, conforme aprendemos de nosso irmão, é sua opinião e prática. Crentes verdadeiros são ovelhas no meio de lobos, ovelhas para o abate; eles precisam ser batizados em angústia e aflição, tribulação, perseguição, sofrimento e morte; eles devem ser provados com fogo, e devem alcançar a pátria de descanso eterno, não por matar seus inimigos corporais, mas mortificando seus inimigos espirituais. Tampouco eles usam armas ou guerras mundanas, à medida que toda matança tem acabado com eles – a menos que, na realidade, continuemos pertencendo à velha lei (Grebel, in Hillerbrand, 1968, p. 127). (3)

Essas palavras foram extraídas da carta que Conrad Grebel escreveu no início do ano 1524, e endereçou a um dos principais representantes da reforma radical (armada) na Alemanha, Thomas Müntzer (1488-1525). Foi seguidor de Lutero, mas rompeu com suas ideias e, especialmente, com sua aparente passividade e condescendência em relação aos mandos e desmandos do Estado. Lembremos que Karlstadt, ex-companheiro de Lutero na Universidade de Wittemberg, após o rompimento com este reformador, passou a adotar ideias e práticas ainda mais radicais; desafiou o próprio Lutero e o governo da Saxônia ao negar o valor da instrução, destruir imagens, rejeitar a presença física de Cristo na ceia, e servir como incitador das massas, já descontentes com o descaso do Estado para com a sua condição miserável e explorada.


Segundo W. Walker (1981, p. 26), “o ataque luterano à autoridade espiritual tradicional e à pregação evangélica da ‘liberdade cristã’ e da ‘justiça divina’ contribuíram, sem dúvida, para o surgimento da revolta dos camponeses”. Ou seja, as ideias de Lutero instauraram uma discursividade e uma ação entre seus seguidores e, por conseguinte, entre os camponeses, que seu “projeto original” de rebelião contra a Igreja (o que para ele seria a favor de um retorno da Igreja às Escrituras) parecia não prever. Tanto que as reações de Lutero aos desdobramentos de seus atos e ideias indicavam que eles representavam uma versão infiel e extrema.


Müntzer foi o grande líder daquela revolta camponesa. Seus principais pontos de divergência com o “status quo” podem ser assim descritos: defendia a revelação direta, por meio de sonhos e profecias; as Escrituras só podiam ser lidas por quem verdadeiramente é possuído pelo Espírito; defendia a luta sangrenta, se preciso fosse, contra as injustiças dos príncipes e sacerdotes; se posicionava contrariamente ao batismo infantil – os dois últimos pontos representavam respectivamente sua discordância e concordância com Grebel e os irmãos suíços.


Embora tentasse manter uma posição conciliadora e corrigir injustiças existentes em ambos os lados, Lutero não via aquele tipo de rebelião que se desenhava com bons olhos. Pelo contrário, conforme expõe Walker (1981, p. 27):

Aos seus olhos… toda revolução política era rebelião contra Deus, e ele considerou as exigências econômicas e sociais dos camponeses, feitas em nome da Bíblia e da “lei divina”, como uma interpretação equivocada (carnal) do Evangelho. Quando a rebelião, mal dirigida, caiu em excessos maiores de violência e pareceu tornar-se anarquista, Lutero [ao seu “melhor” estilo – acréscimo meu] voltou-se contra os militantes camponeses com violento panfleto, Contra a corja de camponeses assassinos e ladrões, exigindo que os príncipes os esmagassem pela força das armas.

Assim, Müntzer foi capturado, torturado e morto na batalha em que 6 mil camponeses também foram mortos, em 15 de maio 1525, o que pôs fim à revolta. Essa revolta, parafraseando Walker, foi uma linha divisória da Reforma. Uma divisória entre Lutero e outros reformadores magistrados versus os “reformadores radicais”; divisória como um evento que marca a violência legitimada da reforma contra a própria reforma; divisória quanto às diferenças presentes dentro do próprio movimento anabatista, quando consideramos sua vertente não-violenta, representada por Grebel e outros, e a linha daqueles que “usavam a espada” se preciso fosse, como é o caso de Müntzer.


Na carta que Grebel escreve a Müntzer – que não se sabe se chegou a ele ou não – apela tanto para pontos em comum (como a questão do rechaço ao batismo infantil) como demarca diferenças com a sua visão sobre o que deve ser a marca de um “cristão verdadeiro”: se necessário for, sofrimento, perseguição, martírio e morte, mas nunca por meio de uma resistência violenta, e sim da resistência não-violenta. Ambos, Grebel e Müntzer, parecem compartilhar de um mesmo descontentamento com as ingerências do Estado sobre assuntos espirituais e religiosos, mas parecem divergir na forma como o cristão deveria reagir diante de tal descontentamento.


Como bem apresenta Hans J. Hillerbrand, editor da obra The Protestant Reformation (A Reforma Protestante), uma compilação de documentos que circularam no período da reforma, a presente carta é um importante documento para entender a “autoconsciência do movimento emergente dos Anabatistas e o temperamento da dissidência radical naquele momento particular” (Hillerbrand, 1968, p. 122).


O que desejo chamar atenção nesse particular trecho acima citado, bem como em outros momentos da carta, é a possibilidade de abstrair um pouco da cosmovisão cristã anabatista, especialmente no que diz respeito à vida pública. Um primeiro destaque, portanto, pode ser o esforço de Grebel em tentar convencer seu interlocutor de que eles não podiam lutar com as “armas do mundo”. Ou seja, já aqui se pode perceber um desejo de ruptura com os rudimentos desse “mundo perverso” – o que, portanto, inclui os expedientes utilizados na maioria das vezes pelo Estado (armas, violência e coerção) – e o retorno a uma espiritualidade livre de amarras, onde a batalha do crente é, sobretudo, de natureza espiritual.


Um segundo destaque, bastante ligado ao primeiro, tem a ver com um desejo forte de se concentrar mais na vontade de Deus, por meio das Escrituras, e menos na vontade e opinião dos homens. Daí, num outro momento da carta, pode-se observar Grebel apelando a seu irmão na fé, Müntzer, para que pregasse apenas a palavra divina destemidamente, estabelecendo e guardando “apenas instituições divinas”, e rejeitando, odiando e amaldiçoando todos os conselhos, palavras, costumes e opiniões dos homens, incluindo os dele (Müntzer) próprio (Hillerbrand, 1968, p. 124).


Esta pode parecer uma ideia inofensiva e que arbitra apenas no campo dito “espiritual” da vida do crente, mas seria um ledo engano subestimar a força que princípios como os tais tiveram na vida e ética, tanto privada como pública, dos anabatistas. Produziu-se, com isso, um olhar autocentrado, uma espiritualidade de fuga do mundo, ausência das instâncias públicas, mas, ao mesmo tempo, uma resistência à interferência do estado no que diz respeito àqueles assuntos, que os anabatistas entendiam ser de livre escolha e necessidade do indivíduo e da comunidade de fé. A fé precisava de terreno livre e sem coerções para frutificar.


Dessa maneira, o modelo de igreja que se perpetua através da reforma magisterial, segundo a visão anabatista, ainda é o velho modelo constantiniano, e haveria, portanto, uma necessidade de retorno aos primeiros passos da fé cristã, o que os anabatistas chamaram de restituição, que literalmente significava “restabelecer a igreja cristã primitiva”. A visão dessa “nova igreja”, baseada no edifício primitivo e nos valores basilares do evangelho, são assim anunciados por Bard Thompson:

A igreja é uma comunidade reunida, que não se confina nem a sociedade, ao estado, nem à igreja histórica, mas em radical separação do mundo a fim de praticar a perfeição prescrita por Jesus. a entrada é pelo batismo, chamado de batismo do crente, que depende exclusivamente da decisão do adulto; batismo infantil para os Anabatistas era tanto sem sentido quanto sem suporte pelas Escrituras (Thompson, 1996, p. 465).

Havia um problema sério, porém, naquela época em tornar pública essa confissão. Esse problema residia no fato de que a sociedade, embora em processo de transformação, ainda vivia segundo o modelo medieval, no qual era inconcebível a separação entre os assuntos da Igreja e os assuntos do Estado, tanto no modelo constantiniano (católico) igreja-estado (church-state) ou no estado-igreja (state-church), tal como ocorria na Saxônia, Zurique e Genebra reformadas (1996, p. 257).


Em função dessa tentativa de independência e dos extremos, que fugiram ao controle das intenções originais anabatistas, houve muita perseguição. A questão é: o que nesse modelo preocupou e incomodou tanto ao estado? Por que o anabatismo era visto como ameaça, já que seu programa interno era de separação das coisas do mundo (política/economia/cultura)?


Segundo Juan Driver (2000, p. 07), as acusações contra os anabatistas giravam em torno da desobediência civil, da rejeição ao juramento de lealdade (obedecer apenas a Deus) e a não-violência: atividades consideradas subversivas. Nesse mesmo sentido, continua ele:

A severidade das sentenças aplicadas reflete não somente a crueldade da época, mas também a seriedade com que as autoridades percebiam a ameaça anabatista. Não era uma questão de meras doutrinas e ritos novos. Tratava-se de uma nova visão da Igreja, que diminuía o controle das autoridades e o restituía ao povo humilde(Driver, 2000, p. 07).

De acordo com a análise de William Estep, a motivação anabatista quanto à resistência da ingerência estatal não implicava na negação do direito do estado de existir, mas na rejeição de sua jurisdição ilimitada sobre todas as coisas, especialmente as de cunho religioso-espiritual. A grande motivação anabatista no que diz respeito a esta separação, segundo Estep, provinha da convicção de que a fé não pode ser forçada ou coagida. Como completa:

A separação da igreja e do estado era vista como necessária por causa da natureza da igreja. Apenas assim a igreja poderia ser purificada e livre para ser a igreja debaixo de Deus. A desativação das igrejas-estado era para os Anabatistas a exigência mínima na garantia de liberdade religiosa. Assim, os Anabatistas se tornaram os primeiros advogados da separação institucional entre igreja e estado na era moderna (Estep, 1996, p. 261).

A questão da perseguição e ameaça dos anabatistas aos olhos do estado, portanto, parece ter sido menos sobre o conteúdo das reivindicações religiosas em si do que sobre as consequências em termos institucionais e de poder que tais reivindicações poderiam produzir.


Em muitos casos os anabatistas foram relegados a uma vida na clandestinidade, em virtude da pujança da repressão e do volume das perseguições. E essa clandestinidade, segundo Juan Dionísio Byler (2000, p. 09), teve consequências práticas no estilo de ser e na maneira de entender a igreja por parte dos anabatistas. Isso não somente os obrigava a propagar-se em pequenas células, como também a reger a vida de maneira independente do mundo externo, em comunidades de ajuda e ajuizamento mútuos, numa atmosfera de amor fraternal e íntimo, mas também de rigor ascético e disciplinar muito grande. Quem não seguia os preceitos anabatistas, nem respeitasse as normas comunitárias, estava sujeito à excomunhão.


Como informa Latourette (2006, p. 1054), “eles tendiam a se retirar da sociedade e a construir comunidades próprias que seriam sem contaminação do mundo ao seu redor”. Além disso, “tendiam à austeridade moral e simplicidade na comida, veste e na linguagem”. A ideia de absonderung (alemão: segregação/ separação do mundo) teve várias e importantes implicações sobre a maneira como os anabatistas concebiam e viviam a fé cristã. Bard Thompson assim retrata a sua “teoria dos dois mundos”:

Eles olhavam para o mundo secular, com todas as suas estruturas econômicas, políticas e culturais como uma realidade altamente demoníaca, com o qual ninguém deveria comprometer sequer um fio de cabelo. Oposto ao mundo secular estava outro mundo, um mundo sem fim, um reino de Deus, do qual as comunidades reunidas dos eleitos eram antecipações. O mundo secular, como dissemos, não foi deixado para destruição – ele deve ser evangelizado. Cada discípulo é, por definição, um evangelista. E o evangelismo irá inevitavelmente envolver sofrimento nas mãos do mundo. Parte da disposição anabatista para o literalismo bíblico converge com uma profunda suspeita em relação à cultura (Thompson, 1996, p. 465).

Considerações finais


O anabatismo foi um movimento que, parafraseando Juan Driver, surgiu e se desenvolveu na periferia da história. Em muitos sentidos, as histórias que continuamos a ouvir sobre a Reforma são histórias contadas na perspectiva dos vencedores, numa visão triunfalista e não problematizadora. Para muitos, Lutero, Zwínglio e Calvino não foram homens comuns a quem Deus usou de modo especial num momento particular da história, mas heróis da fé, ícones intocáveis, tanto pessoal como teologicamente. Não vejo vantagem alguma nesse tipo de leitura. Ela apenas mascara a humanidade presente nesses reformadores, bem como suas idiossincrasias, falhas graves e a lacuna que deixaram. Tendemos a iconizar tanto a reforma no plano original que nos esquecemos de que, em muitos sentidos, o que ela fez foi dar continuidade ao modelo anterior (católico romano).


Isso parece ter atingido de um modo mais sensível ao grupo de cristãos que, por sua oposição a alguns dos valores culturais e teológicos então vigentes (como a questão do batismo infantil) foram pejorativamente chamados de “anabatistas”, o que lhes rendeu perseguição, martírio e um lugar menos privilegiado na galeria dos “heróis da reforma”.


A tendência contrária não deve ser, porém, a de iconizar os anabatistas, como se dentro da gama de variedades e expressões encontradas nesse movimento no século XVI, não tenha havido falhas e extremismos prejudiciais, até mesmo para gerações posteriores. Isso seria um ato igualmente impensável e acrítico da parte de quem o assumisse.


Contudo, não resta dúvida de que, como vimos, eles contribuíram em frentes da reforma que os demais reformadores não haviam sido capazes, por diferentes razões, de desbravar. Seu compromisso livre e fervoroso conduziu-os a lugares e situações que serviram para a expansão de suas igrejas entre pessoas que viviam à margem do alcance da reforma magisterial ou da igreja estabelecida. As palavras de reconhecimento de Juan Driver me parecem pertinentes nesse sentido:

No fundo, a leitura da Bíblia que faziam os irmãos suíços lhes conduziu a uma maravilhosa visão de um Deus que atua independentemente das estruturas estabelecidas – eclesiásticas e seculares – para salvar aos marginalizados e necessitados. Encontravam a salvação sem recorrer aos sacramentos controlados pelo clero oficial, sem submeter-se às estruturas injustas da cristandade, controladas por uma conspiração entre a autoridade civil e a eclesiástica. Enfim, todo seu protesto respondia a um profundo desejo de restituir a igreja de Deus aos pobres e marginalizados (Driver, 1997, p. 06).
 
Referências bibliográficas

BYLER, Dionísio. “Origen de los menonitas: Los anabaptistas no violentos Del siglo XVI. Publicação eletrônica:www.menonitas.org. 2000, p. 1-11. Acesso em: 23/06/2010.
DRIVER, Juan. “El anabatismo en el contexto zwingliano”. In: La fe em la periferia de la historia: una historia del pueblo cristiano desde la perspectiva de los movimientos de restauración y reforma radical. Publicação eletrônica: www.menonitas.org. 2000, p. 1-10. Acesso em: 23/06/2010.
ESTEP, William R. The Anabaptist story. An introduction to Sixteenth-Century Anabaptistm. Grand Rapids, Michigan: Eardmans, 1996.
HILLERBRAND, Hans J (Ed.). The protestant reformation. New York: Harper Torchbooks, 1968.
LATOURETTE, Kenneth S. Uma história do cristianismo: volume II, 1500-1975. São Paulo: Hagnus, 2006.
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WALKER, Williston. História da igreja cristã. São Paulo: JUERP/ ASTE, 1981.


Notas

(1) Aqui se pode ver um conflito entre “verdades” ou, de um ponto de vista pós-metafísico, entre perspectivas. Enquanto para os reformadores magisteriais (e os católicos) o ato de batizar de novo representava um ato de insubmissão e subversão, para os irmãos e irmãs protagonistas desse feito, se tratava do “verdadeiro” e único batismo, ou seja, o que pode ser validado pela confissão e compromisso de fé do indivíduo. Portanto, o signo “rebatismo” deve ser devidamente criticado e problematizado antes de ser utilizado, especialmente por estudiosos e pesquisadores.
(2) Texto em sua versão digitalizada, organizado por Dionísio Byler. Ver: www.menonitas.org.
(3) Tradução livre minha aqui e em outras citações do mesmo autor.


Vi no http://arminianos.wordpress.com/2011/12/08/anabatismo-e-reforma-radical/

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