quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O ateu e o teólogo




Christopher Hitchens e Douglas Wilson debatem fé cristã, justiça de Deus e salvação do homem.




Por Christianity Today



A discussão acerca da conveniência da prática religiosa neste século 21 tem acirrado polêmicas. De um lado, aqueles que defendem que a tese elaborada por Karl Marx no século 19 – a de que a religião seria o “ópio do povo” – encontra cada vez mais eco nesta pós-modernidade; na trincheira oposta, os que entendem ser a fé um elemento cada vez mais fundamental para a humanidade. O teólogo Douglas Wilson e o ateu Christopher Hitchens, autores cujos livros já são parte de um debate maior sobre se a religião é ou não perniciosa, concordaram em discutir suas visões sobre se o cristianismo tem beneficiado o mundo. Wilson, apologista e pastor da Igreja de Cristo, nos EUA, é autor, entre outros, de Letter from a Christian Citizen (“Carta de um cidadão cristão”). Já o jornalista britânico Hitchens é nome de ponta do movimento conhecido como neoateísmo. Uma de suas obras tem o provocante título God is not great: How religion poisons everything (“Deus não é grande: Como a religião envenena tudo”).



As discussões entre ambos já renderam muita coisa, e também um livro, O cristianismo é bom para o mundo? (Garimpo Editorial). Os dois foram reunidos por Christianity Today para lançar um pouco mais de lenha na fogueira entre a fé e o secularismo, cujas labaredas são cada vez mais visíveis na sociedade ocidental. Acompanhar os argumentos de ambos é muito mais do que um mergulho nas dicotomias da alma humana; pode ser também um reforço para aqueles que querem ter sempre à língua a razão de sua fé.






De: Christopher Hitchens






Para: Douglas Wilson






Ref: O cristianismo é bom para o mundo?






Ao considerar a pergunta acima, tenho plena confiança em respondê-la negativamente. E pelas seguintes razões:



1) Embora se credite à sua fé – ou ela credite a si mesmo – a propagação de preceitos morais tais como o “ame ao seu próximo”, não conheço nenhuma evidência de que tais preceitos derivem do cristianismo. Não consigo acreditar que os seguidores de Moisés, por exemplo, fossem indiferentes ao assassinato, ao roubo e ao perjúrio antes de chegarem ao Sinai. Já a parábola do bom samaritano é sobre alguém que, por definição, não pode ter sido um cristão. Essa regra de ouro é muito mais antiga que qualquer monoteísmo, porque nenhuma sociedade humana teria sido possível ou até mesmo concebível sem a solidariedade elementar entre seus membros. Eu diria também que nem a fábula de Moisés, nem as narrativas extremamente discrepantes sobre Jesus de Nazaré nos evangelhos podem reivindicar a virtude de serem historicamente verdadeiras. Mesmo que eu aceite que Jesus – como quase a maioria dos profetas registrados – nasceu de uma virgem, não consigo pensar que isso comprove a divindade de seu pai ou a verdade de seus ensinamentos. O mesmo seria verdade se eu aceitasse que ele ressuscitou. Há ressurreições demais no Novo Testamento para que eu coloque minha confiança em qualquer uma delas, muito menos as empregue como base para algo tão integral para mim como minha moralidade.



2) Muitos dos ensinamentos do cristianismo, além de inacreditáveis e míticos, são imorais. Veja o conceito de redenção vicária, pela qual minhas responsabilidades podem ser lançadas sobre um bode expiatório e, através dele, eliminadas. Em meu livro, argumento que posso pagar sua dívida ou até mesmo assumir seu lugar na prisão, mas não posso absolvê-lo daquilo que você de fato fez. Essa fantasia exorbitante de “perdão”, infelizmente, vem acompanhada de uma advertência igualmente extrema – a de que a recusa em aceitar essa oferta sublime pode ser punida com maldição eterna. Nem mesmo no Antigo Testamento, que recomenda com intensidade o genocídio, a escravidão, a mutilação genital e outros horrores, se inclina a mencionar a tortura aos mortos. Os que contam essa história perversa a crianças não são amaldiçoados por mim, mas o têm sido pela história e também deveriam ser condenados por aqueles que ficam indignados diante da crueldade às crianças – aliás, uma moral essencial, que permeia todas as culturas.



3) Se o cristianismo reivindicar reconhecimento pela obra de cristãos extraordinários ou pelo trabalho de famosas instituições de caridade, então deve ser totalmente honesto em aceitar a responsabilidade pelo oposto. Toda igreja, então, tem de dar alguma desculpa por seu papel nas cruzadas, pela escravidão, pelo anti-semitismo e por muitas outras coisas. Não penso que tal humilhação desqualifique a fé como tal; antes penso que a humilhação levará à conclusão necessária de que a religião é uma fabricação humana. Não posso, é claro, provar que não há nenhuma deidade supervisora que fiscaliza todos os meus momentos e que me perseguirá mesmo depois que eu estiver morto. Nenhum teólogo, no entanto, jamais demonstrou o contrário. Atenciosamente,


Christopher Hitchens







De: Douglas Wilson






Para: Christopher Hitchens






Ref: O cristianismo é bom para o mundo?





Quero começar lhe agradecendo por concordar – como os diplomatas diriam – com uma “franca troca de visões.” P.G. Wodehouse certa vez disse que algumas mentes são como sopa em um restaurante pobre – melhor se não forem mexidas. Lamento concordar com ele quando considero o ateísmo. Lamento que meu problema seja o seguinte: quanto mais mexo a tigela, mais certos vapores, pedaços de carne e perguntas continuam flutuando na superfície. Seu primeiro argumento foi o de que a fé cristã não pode validar-se por toda aquela coisa do “ame ao seu próximo”, sem falar na regra de ouro, e a razão para isso é que esses preceitos morais têm estado claros como o sol para todos os que, através da história, quiseram ter uma sociedade estável. Você passa então ao segundo argumento, que contém a ideia de que os ensinamentos do cristianismo são “incrivelmente imorais.” Em seu livro, você dá o mesmo argumento sobre outras religiões. Aparentemente, a moralidade básica não é assim tão clara como o sol. Portanto, minha primeira pergunta é: de que maneira você quer argumentar sobre isso: todas as sociedades humanas possuem uma noção de moralidade básica, que é o tema de seu primeiro argumento, ou a religião envenenou tudo, que é a tese de seu livro?



A segunda coisa a observar com respeito a isso é que os cristãos na verdade não afirmam que o Evangelho tornou o mundo inteiro melhor ao nos trazer informações éticas turbinadas. Avanços éticos que se devem à propagação da fé têm acontecido, mas a ação não se encontra aí. Os cristãos creem – como C. S. Lewis argumentou em A abolição do homem – que incrédulos não compreendem as bases da moralidade. Paulo, apóstolo, refere-se aos gentios que não tinham a lei, mas que, no entanto, conheciam por natureza alguns princípios dela (Romanos 2.14). No entanto, o mundo não tem melhorado porque as pessoas conseguem compreender os caminhos nos quais elas têm um desempenho ruim. Ele tem de ficar melhor por meio das boas novas do Evangelho – devemos receber o dom do perdão e a habilidade resultante de viver mais em conformidade com um padrão que já conhecíamos, mas ao qual estávamos necessariamente fracassando em obedecer. Assim, o Evangelho não consiste da lei nova e melhorada. Ele torna o mundo melhor através das boas novas, e não através de sentimentos de culpa ou de bom conselho.



Você alegremente menospreza o Antigo Testamento, “que recomenda com intensidade o genocídio, a escravidão, a mutilação genital e outros horrores.” Deixe-me supor, para bem da discussão, que você tenha resumido aqui com exatidão a essência da ética mosaica. Você então continua, para dizer que nós, que ensinamos essas estórias às crianças, temos sido “amaldiçoados pela história.” Mas que diferença essa “condenação pela história” faria a qualquer um de nós que lê estórias bíblicas para crianças, ou, no que diz respeito ao assunto, a qualquer pessoa que cometeu alguma dessas atrocidades, sobre os seus princípios? Essas pessoas estão todas mortas agora, e nós, que lemos as estórias, iremos todos morrer. Os propagadores desses “horrores” teriam se importado? Não há Deus nenhum, certo? Porque não há Deus, isso quer dizer que – você sabe – genocídios acontecem, como terremotos e eclipses.



Toda a matéria está em movimento, e essas coisas acontecem. Se você está no lado mais fraco da corda, há somente a morte; e, se você é um agente gerador desse genocídio, a consequência a longo prazo é a vitória breve e a morte no fim. Assim sendo, quem se importa? Imagine um israelita durante a conquista de Canaã, fazendo todas as coisas ruins que você diz que ocorriam à época. Durante um de seus abusos, espada sobre a cabeça, será que ele deveria ter parado por um momento para refletir sobre a possibilidade de que você pudesse estar certo? “Você sabe, em aproximadamente três milênios e meio, o consenso entre historiadores é o de que eu estou sendo mau agora mesmo. Mas se não houver nenhum Deus, essa desaprovação por certo não perturbará minha situação de completo esquecimento. Adiante com a rapina e a matança!” Em relação aos seus princípios, quem deveria se importar?



Em sua terceira objeção, você diz que se “o cristianismo reivindicar credibilidade pela obra de cristãos extraordinários ou pelo trabalho de famosas instituições de caridade, então deverá também ser totalmente honesto em aceitar a responsabilidade pelo oposto”. Em suma, se apontarmos para os nossos santos, você exigirá que apontemos também para os nossos charlatães, perseguidores, impostores, mercadores de escravos, inquisidores, marqueteiros, televangelistas e assim por diante. Agora me permita aqui o privilégio de identificar a estrutura de seu argumento. Se a um professor recebe crédito pelo aluno que assimilou a matéria, passou nas provas finais e continuou em uma carreira que foi um benefício para ele mesmo e para a universidade onde se formou, o professor deve também (reza a justiça) ser repreendido pelo drogado preguiçoso que ele pôs para fora da sala de aula na segunda semana. Ambos estavam formalmente matriculados, certo? Ambos eram alunos, não eram?



O que você está fazendo é dizer que o cristianismo deve ser julgado não apenas com base nos que creem no Evangelho de verdade e vivem de acordo com ele, mas também com base nos cristãos batizados que não conseguem escutar o Sermão do Monte sem uma gargalhada, e nos que desistiram dele. Essa me parece ser uma maneira curiosa de proceder.



Você conclui opondo-se à soberania de Deus, dizendo que a ideia transforma o mundo inteiro um estado terrivelmente totalitário, onde os crentes dizem que Deus (e quem ele pensa que é?) dirige tudo. Eu o conclamaria a colocar de lado por um momento a teologia da coisa e tentasse reunir alguma gratidão por que aqueles que construíram nossas instituições de liberdade. Muitos deles foram, na verdade, inspirados pela ideia de que, uma vez que Deus é totalmente soberano, e porque o homem é um pecador, logo todo poder terreno deve ser limitado e restringido. A ideia da verificação e do equilíbrio veio de uma visão de mundo que você despreza por ser essencialmente totalitária. Por que essas sociedades onde esse tipo de teologia predominou produziram, como consequência direta, nossas instituições de liberdade civil?



Uma última pergunta: em seu parágrafo de conclusão, você exalta o seu individualismo e seu direito de ser deixado em paz com “os detalhes mais íntimos de sua vida e mente.” Dado o seu ateísmo, que prestação de contas você está apto a dar que exigiria de nós respeito ao indivíduo? Como esse seu individualismo flui das premissas do ateísmo? Como alguém do mundo exterior respeitaria os detalhes de seus pensamentos mais do que respeita as agitações internas de qualquer outra reação química? Afinal, isso é tudo o que são os nossos pensamentos, certo? Ou, se houver uma distinção, você poderia mostrar como as premissas do seu ateísmo podem produzi-la?



Cordialmente,



Douglas Wilson





Vi no http://cristianismohoje.com.br/

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