Na teologia, a grande discussão, o principal nó a ser desatado, tem a ver com a relação entre Deus, felicidade, e liberdade.
E os questionamentos da teodicéia (definida como conjunto de doutrinas que procuram justificar a bondade divina, contra os argumentos da existência do mal no mundo) principiam qualquer debate. Por que sofremos? Por que Deus, sendo simultaneamente bom e onipotente, permite tanta maldade? Não poderia o Todo-Poderoso ter criado um mundo isento de dor?
Para piorar a angústia humana, o sofrimento não só existe, como é percebido. Quando animais irracionais sofrem, a dor não é antecipada, não é analisada e não lhes causa ansiedade. Homens e mulheres, porém, padecem para além da dor física.
Ademais, a dor humana é fonte inesgotável de questionamento, tanto pela sua concretude (dói mesmo) como pela sua subjetividade (existem dores que não sabemos explicar, como a saudade).
Todos sofrem e se angustiam ao mesmo tempo – corpo e mente padecem. Portanto, não bastam as aspirinas, as morfinas, os ansiolíticos.
Também não adianta questionar se é possível um mundo sem dor. O sofrimento é universal, esmurra nossa cara todos os dias. Mesmo quando o dente não dói e o rim não provoca urros, existe a percepção de que agora mesmo, em algum lugar, alguém está chorando.
Os gregos enxergavam o sofrimento como uma tragédia, na qual os seres humanos eram reduzidos a um fantoche. A história seguia por trilhos que eles chamavam de destino e ninguém conseguia se libertar dessa cadeia inexorável. O fatalismo grego provocava passividade (estoicismo), negação (cinismo), permissividade (hedonismo) ou um salto transcendental (platonismo). O mal, contudo, permanecia absoluto, já que nada, e ninguém, poderiam anulá-lo. Nesse sentido, as forças que governavam o mundo permaneciam essencialmente cegas.
Então, o nó górdio da filosofia, e posteriormente, da teologia, se expressava nos paradoxos: “Se existe um Deus onipotente, ele não pode eliminar o mal e o sofrimento? Se existe um Deus bom por que ele não deseja acabar com a dor? Se pode e não faz, não é bondoso. Se quer e não faz, não é onipontente. Se ele não for onipotente, não é Deus. Se não for bondoso, não merece ser servido”.
Reconheço minha limitação. Não tenho a pretensão de dar uma resposta definitiva que desalinhe o novelo que intrigou Heráclito, Sócrates, Agostinho, Tomás de Aquino, João Calvino, Soren Kierkegaard e tantos outros. Meu conhecimento é bem intuitivo e minha contribuição, mínima. Mas como bom cearense, vou ser atrevido.
Para começar a arranhar a superfície do assunto, falemos de liberdade. Tanto divina como humana. Até que ponto existe liberdade no universo? No raciocínio grego, Deus era preso a si mesmo. Compreendido a partir de conceitos absolutos (convém lembrar que no universo semítico não se falava em absolutos), o deus grego era impassivo, já que nada poderia ser tão forte que o afetasse; era inerte, porque o perfeito jamais poderia mudar.
Os gregos restringiam, portanto, a liberdade a uma mera inserção harmônica do indivíduo na polis e da polis no cosmos divino. As bitolas do destino, ou do cosmos, é que conduziam cada indivíduo, cada sociedade e toda a história.
O ser humano não tinha como reverter, adiar ou antecipar o que estivesse determinado pelas engrenagens do fatalismo. Sua liberdade era bem pequena. Ele podia até fazer micro-ações que lhe dariam um pouco de satisfação, mas jamais concretizar macro-ações, aquelas capazes de alterar o que “já estava escrito e determinado”.
A revelação judaico-cristã nunca concordou com essa compreensão grega do “motor imóvel” (Deus como um motor que põe tudo em movimento, mas ele mesmo, por nada é movido). Nem aceitava que o futuro não pudesse ser alterado por estar determinado à priori.
Se os gregos não acreditavam na possibilidade de alterar o curso da história, os profetas judeus, e mais tarde os evangelistas cristãos, convocavam o povo a mudar o futuro.
Aceito o argumento de Jose Comblin de que a compreensão da liberdade não evolui porque se manteve restrista ao conceito grego. A propalada democracia ateniense “somente valia para uma minoria de privilegiados”; a rigor, só havia aristocracia na Grécia. Poucos, muito poucos, conheciam a liberdade.
Portanto, proponho que o debate sobre o sofrimento humano considere a liberdade dentro do campo de compreensão judaica. Deus é livre e os seres humanos, criados à sua imagem, também possuem liberdade de arbítrio.
Deus é onipotente; Deus usou de sua soberania para criar pessoas dotadas de arbítrio. Para mim, essas duas afirmações não comportam discussão.
Mas como podem co-existir duas liberdades, sendo uma delas infinitamente mais poderosa do que a outra? Como os seres humanos poderiam ser livres de verdade se Deus não lhes desse espaço? Feuerbach afirmava que a onipotência divina esmaga a dignidade humana e que se Deus for tudo, não somos nada. Muitos, depois dele, trabalharam dentro da mesma lógica: para Marx, Deus promove alienação; para Nietzsche, empobrecimento; para Freud, infantilização.
O esvaziamento de Deus em Cristo, acaba com o paradoxo da onipotência versus liberdade humana. Cito Andrés Torres Queiruga:
“Talvez não exista mal-entendido mais terrível e mais urgente a ser erradicado do que aquele que Feuerbach pôs – ou melhor, detectou – na raiz do ateísmo moderno: o Deus que em Cristo, “sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com sua pobreza (2Co 8,9), é rechaçado como o vampiro que vive à custa do empobrecimento do homem: “Para enriquecer a Deus, deve-se empobrecer o homem; para Deus seja tudo, o homem deve ser nada".
Portanto, a liberdade humana só é possível porque Deus concede espaço. Eis a maior de todas as manifestações da Graça. Deus se esvaziou, entrou na hístória "manso e humilde de coração", voluntariou-se a viver todas as contingências às quais estamos submetidos, sofreu e morreu como qualquer um.
“O ser humano participa da divindade no sentido de que é feito livre como Deus é livre. Para que a pessoa seja livre, Deus renuncia seu poder. Entrega o poder ao ser humano – juntamente com toda a criação – para que ele construa a sua vida com toda liberdade. Deus se retira para não se impor. A sua presença no mundo manifesta-se na vida e na morte de Jesus. Deus fez-se um crucificado para que o ser humano fosse inteiramente livre. Esta liberdade pode ser para o bem e para o mal. Não há liberdade se não houver possibilidade de escolha” (Comblin).
Segundo Jürgen Moltmann, a fé cristã “liberta para a liberdade”. A reação moderna e atéia, segundo Moltmann, foi na direção oposta:
“No mundo moderno, pelo contrário, os homens entendem liberdade como o fato do sujeito dispor livremente de sua própria vida e de sua propriedade e liberdade coletiva como o fato de corporações políticas, povos ou estados disporem soberanamente sobre seus próprios interesses. Aqui a liberdade é entendida como o ‘direito de autodeterminação’ do indivíduos ou dos povos. Liberdade aqui é domínio sobre si mesmo”.
Mas a fé cristã segue outra lógica. Deus soberanamente decide valorizar as pessoas como cooperadoras com ele na construção da história.
“Mas para a fé cristã a verdadeira liberdade não consiste nem na compreensão de uma necessidade cósmica ou histórica, nem no dispor com autonomia sobre si próprio e sobre sua propriedade, mas sim no ser tocado pela energia da vida divina e no ter parte nela. Na confiança no Deus do Êxodo e da Ressurreição o crente experimenta esta força de Deus que liberta e desperta, e dela se torna participante" (Moltmann).
O mal, portanto, inerente à liberdade que Deus soberanamente decidiu conceder aos humanos, existe simultâneo ao bem. No espaço dessa contingência, o bem e o mal não são apenas possíveis como podem ser potencializados e anulados pelo arbítrio dos filhos de Deus.
A trama das Escrituras consiste em mostrar que essa liberdade foi usada perniciosamente, mas que Deus nunca desistiu da sua criação. Ele revela seu pesar pelo mal; fielmente fornece princípios e verdades que podem tornar a vida bonita; chama seus filhos para que se arrependam das suas más escolhas e os convoca a serem artesãos de uma nova história.
Soli Deo Gloria.
Bibliografia:
Queiruga, Andrés Torres - "Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus" - Paulinas.
Moltmann, Jürgen - "O Espírito da Vida" - Editora Vozes.
Comblin, Jose - "A Vida - Em Busca da Liberdade" Editora Paulus.
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