A Bíblia hebraica descreve o amor de Deus a partir de três principais metáforas: paternidade, maternidade, esponsalidade.
Todas três ressaltam a maneira como os judeus perceberam YHWH se relacionando com os seus. O Deus de Abraão, Isaque e Jacó, Moisés, criou, a partir de sua liberdade, seres capazes de amar e se perceberem amados.
Paternidade revela o jeito como Deus cuida, repreende e se interessa pela maturidade de seu povo – como um pai que educa para que os filhos se tornem construtores responsáveis de suas próprias vidas e da história.
“Também, no deserto vocês viram como o Senhor, o seu Deus, os carregou, como um pai carrega seu filho, por todo caminho que percorreram até chegarem a este lugar. Apesar disso, vocês não confiaram no Senhor, o seu Deus, que foi à frente de vocês…” Deuteronômio 1.30-31.
Maternidade expressa sentimentos viscerais em Deus. Jeremias 31.20 narra o Senhor sentindo as vísceras fremindo por Efraim. O salmista se viu numa relação maternal com Deus: “sou como uma criança desmamada nos braços de sua mãe” – Salmos 131.2. O aconchego do colo, a compaixão (disposição de sofrer junto) e a misericórdia são alguns traços maternos em Deus.
Esponsalidade traça o amor de Deus em aliança conjugal –
Traíram o Senhor, geraram filhos ilegítimos (Oseias 5.7)
Vi uma coisa terrível na terra de Israel. Ali Efraim se prostitui… (Os 6.10).
Como posso desistir de você, Efraim? (Os 11.8)
Em vários textos, Deus se compara ao marido traído, que se mantém fiel, mesmo negligenciado e abandonado. Abraham Heschel, filósofo e rabino, procurou mostrar nesta dimensão específica, o Deus de Israel se distingue do filosófico:
- “O Deus dos filósofos é como a Ananke grega, desconhecido e indiferente para o homem; pensa, mas não tem palavras; é consciente de si mesmo, mas esquece o mundo [Ananke era antiga deusa primordial da inevitabilidade, mãe das Moiras e personificação do destino, necessidade inalterável]. O Deus de Israel, pelo contrário, é um Deus que ama; é um Deus conhecido pelo homem e que se ocupa do homem. Ele não só governa o mundo com a majestade de seu poder e de sua sabedoria, mas reage intimamente aos eventos da história. Ele não julga as ações dos homens com impassibilidade e distância; seu julgamento está impregnado pela atitude daquele ao qual essas ações lhe interessam intima e profundamente. Deus não se mantém fora do raio do sofrimento e da dor humanos. Ele é pessoalmente envolvido, até mesmo influenciado pela conduta e destino do homem”.
A Bíblia hebraica não trata o dogma da soberania como conceito absoluto. Nas páginas do Antigo Testamento, não existe linearidade na descrição de Deus, agindo, concatenando o mundo de acordo com seus próprios critérios, mas, atropelando a sorte de indivíduos. Soberania tem mais a ver com a fidelidade divina de não desistir de amar e de continuar interpelando homens e mulheres rebeldes para que voltem para ele. Mesmo quando Israel deu as costas, Deus insistiu em continuar amando. Tal soberania lhe custa – Isaías 53. Longanimidade, conceito semita de difícil tradução, pode significar “disposição de esperar mesmo diante do sofrimento“. Deus é paciente. Deus espera. Em Isaías, experimenta dores agudas, como de parto, no aguardo de um novo futuro para o povo: ”Fiquei muito tempo em silêncio, e me contive, calado. Mas agora, como mulher em trabalho de parto, eu grito, gemo e respiro ofegante” Isaías 42.14.
A Bíblia não declara, portanto, que Deus é amor como mero chavão. A frase carrega desdobramentos profundos que, refletidos até às últimas conseqüências, desembocarão em Jesus de Nazaré.
Soli Deo Gloria
Por Ricardo Gondim